28 de fevereiro de 2010

Fronteira, chão, muro: toco a Venezuela















































































Domingo de olho em tudo

Obá! Hoje é domingo e eu acordei bem mais tarde do que de costume, não tomei café e o almoço aconteceu na vizinhança do hotel onde estamos, que vale dizer, é uma "espelunca". Uma cara espelunca. Hospedagem em Caracas, ou melhor, na Venezuela, é caríssima. Para se ter uma idéia, no caminho para cá, paramos na cidade de Valencia. Ali pretendíamos almoçar, já quase na hora da janta, e também dormir, mas não conseguimos hotel, e tivemos que esticar a viagem direto para cá, com fome e já com a noite sobre nossas cabeças. O bom foi ver a lua me lendo atrás da janela do Inulatão. Fiquei arrepiada com sua luz.

Hoje foi um domingo revestido de curiosidade. Depois da comida chinesa - sim, foi este o nosso cardápio, hoje, pois não é fácil conseguir lugar que aceita cartão por aqui, e a coordenação da Caravana não tinha conseguido sacar bolívares -, caminhei pelas ruas de Caracas procurando as pistas para compreender a Venezuela, perceber mais este país que nos chega, através das notícias, como um lugar confuso e de polarizações pró e antiChávez, de modo que se torna relativamente difícil compor uma opinião sobre seu momento político.

E preciso dizer: um dia é quase nada para compor uma noção sobre uma cidade do porte e da complexidade de Caracas. Logo, continuo no ritmo do não-saber, mas este ritmo se confronta, agora, com uma necessidade alucinante de absorver o máximo que eu puder deste país latinoamericano, que assume uma postura bastante crítica em relação aos Estados Unidos, ainda que continue lhe vendendo petróleo. Contradições é o que não falta nestas bandas de cá. Haja leitura, reflexão, pesquisa para contemplar o horizonte de ambivalências que se nota por aqui.

Ah, e preciso revelar que existe em mim uma vontade grande de detectar o que a sociedade venezuelana pensa de Hugo Chávez, o que me faz perguntar a muitas pessoas: "o que você acha de Chávez?". Lancei esta interrogação a uma jovem que estava no mesmo vagão do metrô que eu. Ela me disse: "ele faz boas coisas para a Venezuela". Não deu tempo saber que coisas boas são estas. Minha estação chegou, dei-lhe tchau e desci, sabendo que os domingos são sempre muito movimentados no centro de Caracas.

Foi ela quem me confirmou esta informação, informação que eu estava já sentindo com os olhos e os ouvidos, pois as ruas do centro são muito agitadas em pleno domingo. Há vários vendedores ambulantes e as praças estão habitadas. Além disso, haja sirene: bombeiro, ambulância e Deus sabe mais o quê. Como não podia deixar de ser, fiquei com muitas perguntas, e o que por ora posso dizer é que, em Caracas, praticamente todos os moradores têm carro, embora muitos sejam um antiguíssimo Chevrolet, imenso e que, para ser estacionado, exige, é claro, muito espaço. Além disso, notei que os os muros aqui são grandes telas que expressam o humor do venezuelano. Haja pintura, pichação, recados políticos.

E se você faz planos de passar uns dias na capital venezuelana, prepare-se para dançar rumba, um ritmo caribenho bastante comum por aqui. Nossos ouvidos cruzam o tempo todo com este tipo de sonoridade, que nos faz balançar o esqueleto de um jeito bem gostoso. Fiz isso hoje e foi o máximo. Estávamos andando pelo centro e nos deparamos com uma praça, onde casais dançavam e se esbaldavam sem cessar. Entreguei-me ao improviso dos passos junto com o versátil caravaneiro Ramon, que ainda foi mais além e dançou com uma linda e flexível senhora de cabelos brancos e olhos azuis. Foi muito divertido.

E, para conferir, é só acessar o link http://subliterato.blogspot.com/2010/03/integracao-venezuela.html

Quartos que me abraçam e me acolhem




Livros que me acompanham: os três já lidos e absorvidos fazem digna morada em mim. Êêê!


As malas e a chegada nos hotéis




Vermelhos na Linha do Equador



















Meu Deus, que necessidade de falar de todas as pessoas que conheci, de todos os postos de gasolina que vi, de todos os pequenos hotéis onde meu cansaço foi despejado, de todas as pequenas cidades que cruzei! Que necessidade de partilhar o sabor das comidas que pus na boca, o aroma das flores que cheirei! Quantas narrativas ainda não dividi, quantas descrições que não fiz, isso porque de tanta vida me inundando, minhas mãos se tornaram insuficientes para darem conta de contar tudo, e agora eis que em meu arquivo se sobrepõem a experiência única de ter pisado a Linha do Equador, o passeio muito tocante à Isla del Sol, na parte boliviana do Lago Titicaca, as enriquecedoras visitas aos museus e toda a programação oficial da Caravana e que consiste em reuniões em embaixadas, visitas às universidades e outros espaços institucionais. Eita... ruma de acontecimento derramando sem parar sobre mim! Neste momento, um monte de episódios pula no meu interior querendo virar história contada, mas estou com sono e preciso dormir. Contudo, para eu não me sufocar com o acúmulo dos capítulos, sinto-me chamada a espalhar o pensamento que me veio quando trisquei a Linha do Equador: lembrei-me das aulas de geografia, revisitei as noções de latitude e longitude e me dei conta de que, quando criança, pensava eu que a única linha que divide o mundo é a Linha do Equador. Vislumbrei a minha doce inocência, me deliciei com a minha meninice e fui me dando conta de que, à medida que fui me tornando mulher, fui percebendo que tantas outras linhas dividem o mundo em incontáveis mundos... Rezei para que as desnecessárias linhas se desfaçam.

27 de fevereiro de 2010

Com toda minha curiosidade em Caracas

Falta poucos dias para finalizarmos o giro pela América do Sul. Meu Deus, que quantidade nova de vida vejo colada em minha pele! A sensação é de aumento de quem sou. Manuseei muitas emoções e cresci em cada canto onde dormi, acordei, comi, pisei e me fiz gente. Maravilhoso colher cada sorriso, ouvir cada palavra dita e sacudir meu espírito latinoamericano de um jeito tão único. Ôps! E ainda há o que eu tocar de novidade, pois, na última sexta-feira, cruzamos a fronteira para o nono e último país a ser conhecido. Por volta das 14 horas, adentramos, sem impeditivos, o país onde combustível vale muito pouco e comida custa literalmente os olhos da cara. Estamos na Venezuela. Dormimos em San Cristóbal; inclusive devo dizer que é a segunda cidade com este nome que passamos, a outra fica na Bolívia. Agora escrevo de Caracas e preciso dizer que abastecer nosso ônibus na estrada foi bem mais barato do que o que pagamos por um arepa (bolo feito de milho que é servido com os mais variados recheios e é bem popular nestas bandas de cá). Colocamos 297,9 litros de diesel no tanque do Inulatão, o que nos custou 14,26 bolívares, sendo que cada bolívar vale R$ 1,50 (Um real e cinquenta centavos); já pelo arepa pagamos 20 bolívares. Que desproporção! Logo, não dá pra fugir do senso de observação minuciosa estando aqui, e tenho muito a descobrir nestas terras onde Hugo Chávez vem deixando fortes marcas. No caminho para cá conversei com Antônio e Ademar, dois caminhoneiros com que prosei por um bom tempo, enquanto esperávamos a liberação da estrada, que estava com o trânsito suspenso devido às obras de manutenção de uma ponte. Foi um papo ótimo, que me rendeu muitos aprendizados. Para Antônio, o presidente Hugo Chávez está realizando um comunismo disfarçado e ele ainda me disse que de todos os estados da Venezuela somente dois não são governados pelo partido de Chávez. Falamos de muitos aspectos da vida venezuelana, ele mostrou sua admiração por Lula, pois tem um cunhado que há três meses trabalha na Esso, em São Paulo, e tem lhe dado boas notícias de como vive lá, e, por fim, me sugeriu que eu vá a um supermercado, em Caracas, pois, segundo ele, é uma experiência muito curiosa que eu não posso deixar de ter, e ao saber que faço parte de uma Caravana que está cruzando de ônibus nove países da América do Sul, ele me disse: "não há nada que substitua isso que você está vivendo, menina, os livros não dão todo este conhecimento"! Quase chorei.

25 de fevereiro de 2010

Pausa para o sono

Sugiro para mim o que vem em minha cabeça. E o que vem é bonito, alegre, repleto. À medida que o percurso até a Venezuela vai sendo tragado e a distância vai se reduzindo, alcanço uma inesquecível ciranda de cores e vejo as montanhas beijarem as nuvens sem medo e sem pressa. Contemplo tudo. Avisto as árvores floridas contornando a ponta da estrada onde as rodas do ônibus passam, e com este feito preencho-me do total respiro do mundo. Ouço meu coração agradecer o alimento que lhe ofereço, levo para dentro de mim uma nova energia e nada tensiono, nada seleciono, nada desrespeito. Noto que existe uma rodovia que é puro ziguezague, com uma paisagem magnífica em volta e muito movimentada pela presença de caminhões da marca Kenworth. Vejo-me dentro deste cenário. Quando pensei isto em minha vida? Somos mesmo feito do que virá. Agora estou numa lan house colada no hotel onde vamos dormir esta noite. O nome da cidade é Bucaramanga e fica em terras colombianas. Pelo menos seis horas nos afastam da fronteira que dizem ser uma das mais desafiadoras. Vou rezar para tudo dar certo. Fui. O sono me toma.

Novas estradas
























São 4h10 em Bogotá. Minhas malas estão na porta do hotel esperando o ônibus para seguirmos rumo à Venezuela. Aqui deixei todas as minhas canetas coloridas, pois meu estojo se foi junto com meu pen drive. Perdi esta parte da bagagem. Procurei em vários pontos e não encontrei. A partir de hoje vou ter que recorrer a novas canetas para escrever sobre as novas descobertas. Quais paisagens virão agora? Tão bom não saber e saber que vão desabrochar! Meu culto à janela do ônibus continua. Minha filmadora e minha cadernetinha sabem como se relacionar com o caminho. Meus pés apontam para frente e pedem versos. Eu os levo, eles me levam. Seguimos.

24 de fevereiro de 2010

O que vejo no café da manhã
















Câmera fotográfica com defeito, vestido amarrotado, alma ampliada, fome, quase todas as malas nas mãos e, no peito, a sede acesa para me apaixonar por mais uma cidade: sou Sarah desembarcando, às 23h do último domingo, na Carrera 4, número 13 - 12, no Centro Histórico da Candelária, parte antiga da cidade de Bogotá, onde se vê paredes coloridas e muros artísticos. Mas, deixei suas cores para o outro dia. Meu sono estava maior do que a curiosidade, e assim que entrei em meu quarto, dormi; não fui buscar a cidade. Estava cansada do percurso de Quito para cá, uma estrada que, embora muito bela, oferece riscos de acidente e uma quantidade de militares que causa estranhamento aos nossos olhos. Devido à existência inexplicável das FARC no território colombiano - sim, aqui ninguém sabe explicar porque existem e o que querem, - as rodovias são completamente vigiadas por soldados do Exército fortemente armados. Mas, depois falo mais sobre este assunto. Estou com dificuldade para partilhar novidades no blog; o hotel onde estamos oferece um serviço de internet muito ruim. Então, eis que estou sem conexão e sem câmera para registrar o que meu corpo alcança, visto que ela caiu das minhas mãos e desde o Equador vem limitando sua atuação: está fazendo poucos cliques. Busquei a assistência da Sony aqui, mas para os técnicos resolverem o problema, eles precisam de mais tempo do que vou passar nestas paragens. Restou-me, assim, elaborar uma idéia sobre a pane na máquina fotográfica, e a tal idéia diz respeito ao que Bogotá quer de mim. De repente, ela me pede que eu a contemple, sem me preocupar em apertar o botão para transformá-la em imagem "congelada". Estou respeitando isso, rs... Bom, necessito ir, o almoço me chama, mas antes quero dizer que Bogotá é uma cidade muito lindinha, com construções de tijolinhos à mostra, porções de verde que apaziguam e uma série de aspectos que não tenho como mencionar neste texto, devido à falta de tempo. Contudo, esta cidade, que vive completamente atormentada pela existência das FARC, oferece para os meus olhos, no café da manhã, uma graciosa rua de casas bonitinhas, tendo ao fundo uma montanha verde e nublada. Adoro me sentar na aconchegante casa de pães, doces e tortas, na rua onde estou hospedada. É uma rua de mão única. Meu coração me informa que é a primeira hospedagem numa rua deste tipo ao longo da viagem. O que isso significa? Não sei, mas sei que todas as ruas por onde passei: as asfaltadas, as de areia, as de lajota, as de pedra... se encontram dentro mim e fazem uma festa de novos sentidos e novos sentimentos.

21 de fevereiro de 2010

Minha boca carrega palavras

Acabamos de parar para almoçar e o restaurante dispõe de acesso à internet. Temos como destino Bogotá e não posso deixar de usufruir desta condição: sentir o prazer de escrever direto do meio do caminho. Por ora, basta-me escrever aquilo que está impresso no meu paladar, que neste momento, está saboreando um delicioso trucha com salada. Em minha língua encontrei a palavra "impulso", e com ela vou seguir para sentir ainda mais. Respiro a América Latina, piso firme e impulsivamente almejo.

O carinho de San Pedro de Atacama




































Viver grandes doses de experiências seguidas não permite que o relato emerja logo depois do vivido. Alguns episódios pedem mais tempo para serem digeridos e há várias situações deste tipo na viagem, é claro. O deslocamento do Chile para a Bolívia, por exemplo, ainda me renderá muitas leituras, outras extrações. Tudo que eu vivi naquele trajeto me toca de um modo bastante singular. E foi exatamente neste caminho que eu me deparei com San Pedro de Atacama. Era sábado e fazia um sol gostoso quando chegamos lá. Ali, me senti acarinhada pelo lugarejo onde há hotéis, restaurantes, cafés, campings, serviços de aluguel de bicicletas e muito mais. Naquelas ruas rodeadas de barro, vivendo e vendo as casas com parede de adobe e sentindo um aconchego sem igual, pois na noite anterior tínhamos dormido dentro do ônibus, em Antofagasta, porque não encontramos hospedagem, me lembrei do fragmento de um poema de Manoel de Barros, que diz:

"Que a palavra parede não seja símbolo de obstáculos à liberdade
nem de desejos reprimidos
nem de proibições na infância,
etc. (essas coisas que acham
os reveladores de arcanos mentais)
Não.
Parede que me seduz é de tijolo, adobe
preposto ao abdomen de uma casa
Eu tenho gosto rasteiro de
ir por reentrâncias
baixar em rachaduras de parede
por frinchas, por gretas - com lascívia de hera.
Sobre o tijolo ser um lábio
tal um verme que iluminasse"
Do poema Seis ou treze coisas que aprendi sozinho

O não dito




























Porque tenho caneta e papel eu anoto. Escrevo. Sujo os dedos. Rabisco pensamentos. Elaboro frases, e, mesmo não tendo a pretensão de conseguir expor tudo que estou vivendo, não desassossego enquanto não passo algumas anotações do papel para cá. Há tempos quero partilhar minha ida a Tiwanaku, importante sítio arqueológico pré-colombiano. Alguns estudos revelam que esta civilização é a mais importante civilização pré-inca. Estive lá faz 18 dias. Meu Deus, incrível a passagem do tempo nesta viagem! Afinal, Tiwanaku fica na Bolívia, e eu já estou na Colômbia; decididamente, este é um diário de bordo que não tem a menor condição de obedecer à cronologia. Estando em Tiwanaku, fiquei tocada ao saber da genialidade da civilização pré-inca. Senti-me chamada pelo barro, e ao sentir este chamado, lembrei do texto que Saja, professor de filosofia da UFBA, escreveu num calendário para este ano. Vejam: "Desde os tempos mais remotos o homem se depara com a presença enigmática do barro, ele mesmo, este homem, produto desta tão simples e decisiva matéria na manhã luminosa do sexto dia ainda no Jardim do Éden, pelas mãos de Deus! Assim, constituídos do barro, somos, a exemplo de Deus, a um só tempo, oleiros no exercício do trabalho diário - quando inventamos e reinventamos a vida - e, arquetipicamente, parentes diretos de tudo aquilo que deriva do dom de se deixar modelar, de se deixar amar pelo mistério da vida que habita no centro mesmo deste barro primeiro"!

20 de fevereiro de 2010

Caminho e eles me levam pelos caminhos


























É incessante a vontade de catalogar todas as vivências, armazená-las, fazê-las crias da minha memória, e, no emaranhado de capítulos que me enreda, reservo parte de mim para abraçar os caminhos feitos durante a viagem. Vejo-me com a necessidade de devorá-los como porção essencial da experiência incrível que estou vivendo. É poderoso caminhar, nos deslocar no Inulatão, sob as mãos habilidosas dos nossos guerreiros motoristas Domício e Marivaldo, e avistar da janela o verde da planície entre a Argentina e o Chile e o sol se pondo no percurso entre este país e a Bolívia, como mostram as fotografias. Graças ao nosso amado ônibus e aos nossos competentes condutores, alcançamos cenas alucinantes nas estradas: deserto, vulcão, mar, montanha, oceano. Abençoada seja a janela! Abençoados sejam os pés de Domício e Marivaldo. Não posso deixar de dizer que é difícil organizar quem eu sou, quando estou nos caminhos, e a única coisa que consigo saber é que quero caminhar mais e mais. E sendo eu uma menina-mulher com flor e que tem sapato vermelho enfeitado, sigo embalada pelos dois grandes homens do volante. No Deserto do Atacama, eu e eles subimos num morrinho; Tássia, a caravaneira, que tudo que vê, diz: "que lindo", subiu também e ali fizemos um registro, rimos e, depois de dados à beleza rara do lugar, continuamos a caminhar o nosso caminho.

Magnífica estrada para Bogotá

Pétalas de flor cor de abóbora se mostram na margem esquerda, o sol ilumina o outro lado, há incessantes sinuosidades, as curvas não aliviam e as montanhas são verdes. Lembro de Ada, a mãe boliviana que interrompeu a estrada, em Oruro, junto com outros companheiros para exigirem a escritura de suas casas. Recordo-me da nossa rica conversa e tenho vontade de saber se sua luta está ganha. Será que um dia vou rever Ada? Sinto o vento me beijar e sei: estou numa estrada poética. O caminho em direção à Bogotá é assustadoramente belo. Casas beirando o nosso ônibus que passa, mas segue, e eu me perguntando que vidas a minha vida beira e que vidas existem ali beirando o percurso que me tem como viajante. Passa um homem de bicicleta, vem mais uma curva, outra e outra mais. A luz lambe a pele das montanhas dando-lhe um brilho sofisticado. Elas, as montanhas, parecem querer furar o céu. As nuvens imitam a fumaça. Surge um túnel, e, depois, virão mais dois. Tudo escurece e eu não desgrudo da janela. Acostamento não existe, preenchemos a estreita via e há despenhadeiro. A emoção festeja o que experimento de aventura! Avisto um circo, meu coração acelera e um casal na janela de casa olha para a lona colorida. O que pensam? Será o riso do palhaço no picadeiro o programa que farão, hoje, à noite? Ali perto um cavalo e seu dono interagem, uma moto preta está parada, um carro velho azul se movimenta, uma menina brinca na mesa, um varal, com duas blusas azul marinho e uma bermuda vermelha, faz o seu trabalho. De quem são aquelas peças de roupa? O homem resolveu sentar embaixo da árvore. Nasce uma cruz cercada de meia dúzia de flores rosas e vermelhas. Não dá para não ler a placa avisando o perigo. Existe um grupo de pessoas conversando para aproveitar o entardecer. Mais adiante, outro grupo faz o mesmo. Um homem usa a pia, lava alguma coisa. Sinto-me feita do desejo de sugar o que as retinas alcançam e constato que adoro inventar perguntas.

Nossa rotina

No remelexo da caminhada pelos diversos cantos da América do Sul, temos os nossos rituais: arrumar uma mochila para levar dentro do ônibus, pois a mala grande fica armazenada no bagageiro e só apanhamos nas capitais; subir e descer do ônibus, com agilidade porque, muitas vezes, paramos em vias que não cabe o Inulatão; deixar o passaporte sempre fácil, quando estamos próximos às fronteiras, onde devemos descer com caneta na mão, para o preenchimento da guia de entrada no país; ao chegar no hotel ou hostel, esperar ver como vai ser a distribuição dos caravaneiros, se em trios, duplas ou quarto individual, como já aconteceu comigo; anotar a senha da internet sem fio, quando o local onde nos hospedamos oferece este serviço; varrer o Inulatão e limpar seu banheiro antes da partida para o próximo destino; comprar água e mantimentos para serem consumidos na estrada, e nas refeições, buscar saber qual o valor que pode ser consumido e nos organizar para comermos, ocupando as mesas dos restaurantes com muita festividade e assuntos. Incrível como não cessamos a conversa em nenhum momento da viagem, aliás, somente quando dormimos, mas, como é comum sonharmos uns com os outros, a ligação não para nunca. Eita integração!

Parada para dormir

Entro numa farmácia, compro sabonete, desodorante, e a moça que me atende é gentil: se propõe a trocar minha moeda de 500 pesos por cinco de 100, para que eu me pese, visto que a balança só funciona após o depósito de 200 pesos. Mas ao verificar a gaveta de dinheiro, ela notou que não tinha as necessárias moedas de 100 e, por isso, eu não pude saber com quantos quilos estou após 37 dias de viagem. A última vez que pisei numa balança, o que se deu num restaurante, em Chala, no Peru - usei a balança destinada a alimentos - eu havia engordado um quilo. Não dá para não mexer no peso, tendo uma rotina de alimentação tão incerta, com dias sem café da manhã, outros, sem almoço, e assim vai.

É o meu terceiro sabonete desde que sai de Salvador. Muitos banhos já tomei e eles são sempre renovadores, quando não, antropológicos, rs... Não posso esquecer o demorado banho que tomei no Camping, em San Pedro de Atacama, lugarejo no Deserto, no Chile, e que me rendeu doces momentos. Vou falar sobre San Pedro em outro texto, mas adianto que lá acampamos e o banho tomado, naquele banheiro que não posso tirar da minha cabeça, me chegou após dois dias sem banho, sendo que meu corpo estava coberto pelo sal das águas do Pacífico. Pode imaginar o que é um banho no deserto? Ainda mais com o corpo sem banho há dois dias e com sal e poeira sobre a pele?

Bom, mas eis que estou com sabonete novo, tenho um cheiro a mais para conhecer e, assim, a viagem cresce no tamanho e no sabor. Já são mais alguns quilômetros rodados, novas emoções vivenciadas e mais algumas cidades visitadas. Estamos na cidade colombiana de Popayán, após termos dormido, sexta-feira, em Tulcan, ainda no Equador, e, ontem, termos passado com tranquilidade pela fronteira da Colômbia e parado aqui, nesta linda cidade povoada de construções coloniais, todas brancas e espalhadas em ruas com uma iluminação em tom antigo e que dispensa postes. Trata-se de uma pausa para jantarmos e dormirmos. Ainda antes do sol nascer, seguiremos até Bogotá. Segundo informações dadas por pessoas que moram nesta parte do mundo, são dez horas de viagem até a capital colombiana. Ôps, mas pode não ser exatamente isso! Afinal, já percebemos que nem sempre o que nos dizem se confirma, sem falar que a noção de "perto" e "longe" por onde temos passado não equivale à nossa forma de perceber as distâncias.

Quando fomos do Chile para a Bolívia, por exemplo, nos disseram que de San Cristóbal, uma pequena localidade boliviana, para Potosí, cidade que merece vários escritos somente para ela, gastaríamos três horas de viagem. Contudo, considerando que o caminho entre os dois lugares é uma estrada de chão, com direito a algumas costelas de vaca que nos fizeram cambalear bastante dentro do Inulatão, e que além disso pegamos chuva no caminho e paramos para esperar carros, que estavam em nossa frente, serem desatolados, as três horas foram multiplicadas por quatro e eis que gastamos 12 horas fazendo um percurso que nos rendeu muitas histórias. Sem dúvida, o caminho entre o Chile e a Bolívia me marcou para sempre. Aliás, já são várias marcas e eu estou em êxtase com isso.

19 de fevereiro de 2010

Necessárias perguntas

Quanto vale minha curiosidade? Qual o seu tamanho? Ela tem um eixo que lhe estrutura?

Palavras que me chegaram no Parque Carolina

Pensamentos me assaltam, não corrijo meus anseios e embarco na leveza que o lugar me oferece. Renovo o pacto com a sensibilidade para que ela não me abandone. De tanto ver, olhar, escutar, os quadrados viram círculos e os triângulos revertem o sentido. Arrisco dormir, valorizo o verso e penso no formato da flor. Desejo uma foto dos meus pés pisando a grama verde. Deito-me na grama e sinto o sol. Meus óculos escuros são desnecessários. Não encontro cartões-postais para comprar, rasgo coisas dentro de mim, lembro que tenho uma casa e que posso trocar de toalha a cada semana. Vem um entroncamento, uma sinaleira, mas me retiro, volto-me para o verde, quero o sol. Ouço Mercedes Sosa e deliro com sua voz. Não desejo prateleiras, prefiro o vento. Sorrio para um índio e faço-lhe perguntas. Daqui a pouco tudo isso acaba. Não, não acaba, vai ficar em mim totalmente. Tudo isso tem mexido muito comigo, tem me dito quem eu sou, o que eu devo levar como parte de minha história, o que devo deixar para trás, o que devo mostrar para outros, o que devo carregar em minha bagagem. Quero estudar mais, conhecer, criar. O novo e o velho podem conviver em mim.

Flores de Quito





















Não foi à toa que o caminho entre Guayaquil e Quito me fez querer ter jarrinhos de flores em casa. A capital equatoriana tem uma forma elegante de se enfeitar. As sacadas dos prédios, as varandas das casas, as repartições públicas, as ruas são carinhosamente adornadas com jarros de flores. Os gerânios dão um ar de lirismo à cidade e instalam um delicado tom, que enche nossos olhos de boniteza. Quito é graciosa, e nela há um lindo centro histórico, uma animada ala moderna, bares muito estilosos, parques sem grade, artesanato bonito e os jardins das suas praças são mimosos como os da casa de vó, não têm a artificialidade do paisagismo urbano: nada dos desenhos geométricos feitos com tesouras que sufocam o formato típico das árvores. Achei isso sensacional e levo Quito comigo.

18 de fevereiro de 2010

E que venha o oitavo país

Amanhã, às 7 horas, partimos em direção à Colômbia. Ufa, não vamos precisar acordar às 4, o que é comum quando a estrada é o alimento dos nossos olhos, conforme já comentei anteriormente. Confesso que ter mais três horas de sono me agrada muitíssimo. Vou poder alongar o sonho e abastecer o corpo de energia para dar conta de mais horas e horas dentro do nosso amado ônibus.

Até Bogotá o percurso, embora seguro, requer cuidado em virtude das diferentes forças que convivem no território colombiano. Fizemos uma reunião há poucos instantes, olhamos o mapa, vimos por onde vamos passar e estamos atentos às recomendações dadas pela Embaixada do Brasil naquele país. Seremos obedientes.

Por precaução, retiramos Medellín do nosso roteiro. Afinal, esta viagem é assim: um exame permanente de possibilidades, e, por isso, recorremos insistentemente ao estudo lírico dos riscos e ao contínuo exercício do desapego. Que aprendizado belo este! Estamos indo, fazendo, tocando, cumprimentando o que estar em nossa frente, de modo que ora nos aparece o que não estava programado, como o banho de mar no Pacífico em plena rodovia, o que se deu porque erramos o caminho; ora sai de cena aquilo que estava planejado, como aconteceu com Machu Picchu.

Então, como somos seres do "não sei", eu abraço absolutamente tudo que me surge: a fotografia do senhor sentado na praça, o capim crescendo no parque, a roda do ônibus atrás do canteiro florido, o sorriso boliviano de Ada, o cabelo grande do taxista em La Paz, uma mulher, no batente da porta, em Quito, amamentando sua filhinha que vestia um lindo vestidinho rosa; o café com leite da cidade peruana de Trujillo, as cores do Caminito, em Buenos Aires; a conversa com José, em Assunción... e tudo mais que eu nem consigo dizer.

Afinal, já passamos pelo Paraguai, Uruguai, Argentina, Chile, Bolívia, Peru e Equador. A emoção ferve e eu digo: que venha a Colômbia.

16 de fevereiro de 2010

Simplicidade que chama minha atenção




Um dia leve em Quito

O primeiro aspecto que quero sublinhar em Quito é que sua economia é dolarizada e isso me incomoda bastante porque sugere subserviência. Estranho ver todos os preços em dólar, sentir a cidade muito americanizada e com uma identidade espumante que parece não se firmar. Ainda é cedo para falar da capital equatoriana, onde há a parte moderna, que se chama Mariscal e é onde estamos hospedados, e a parte colonial, mais antiga e que ainda não conheci.

Ontem, foi feriado nas bandas de cá. Por isso, o dia me rendeu um acordar mais tardio, um delicioso café da manhã, um passeio sem pressa pela livraria Libri Mundi, a aquisição de livros preciosos, uma visita a uma loja de artesanatos, uma sopa quentinha no final da tarde, na companhia de Fred, Camila e Mari; um papo muito legal nesta roda boa, um rápido banho de chuva, uma conversa saudosa com meu amor, uma salada rica no jantar e mais vontade de perceber detalhes.

Por isso, vi os jarrinhos de flores nas varandas, em Quito, assim como vi muitos outros a caminho daqui. De tanto que gostei de vê-los, passei a chamar o trecho entre Guayaquil e Quito de "o começo do meu gostar de jarrinhos de flores arrumados em fila". E o gostar já está tão iniciado em mim, que comprei, na Libri Mundi, uma cadernetinha linda com um jarrinho estampado em sua contracapa. Desejo regá-la e escrever bonitos poemas em suas páginas. Ah, quero também ter jarrinhos enfileirados no Cerco Sarah de Ser, que é a minha casa.

Texto grande porque estou repleta

Na sequência dos dias, as rotas vão mudando porque de outro modo não dá pra ser. Nosso plano era adentrarmos o Equador no dia 14 (domingo), mas alcançamos sua porta de entrada no dia 13 (sábado). A antecipação se justifica porque havia uma previsão de maior permanência em Paita, cidade para a qual seguimos a partir de Piura, última localidade peruana onde dormimos, e isso foi no dia 12 (sexta-feira). Foram muitas situações até chegarmos no destino, de modo que sinto a necessidade de rememorar o percurso, saindo de Lima com direção a Quito.

No dia 11 (quinta-feira), deixamos Lima, dormimos, em Trujillo, onde ficamos num hotel com quarto de decoração florida, cuja porta dá para um corredor gigante - desconfio que aquele é o corredor mais comprido que já vi na vida. Chegamos em Trujillo, à noite, e a cidade oferecia poucos lugares para comermos. A opção era, mais uma vez, nos darmos ao frango, que em espanhol significa pollo e é um dos pratos mais servidos por onde passamos. Pollo e papas fritas, que é batata frita, estão em praticamente todos os cardápios que já toquei durante a viagem, sobretudo, a partir da Bolívia. É tanto pollo que existem as Pollerias, casas especializadas em pollo.

A solução neste dia, em Trujillo, foi um restaurante 24 horas localizado bem pertinho do hotel onde o garçom era o grande personagem: um senhor, de baixa estatura, com um engraçado modo de andar e um jeito de falar que lhe fazia emitir poucas palavras. Como eu não queria jantar, pedi um pão com queijo e café com leite. Antes, um suco de abacaxi, que também foi pedido por outras pessoas. Quando nosso atendente apontou na mesa, eis que nos trouxe muito mais copos de suco do que havíamos solicitado. Solução: bebermos tudo até esgotar e guardarmos esta história para nossa galeria de risos.

Ah, o café chegou bastante concentrado numa espécie de bule de vidro, acompanhado de uma xícara cheinha de leite. Dissolvi no leite o denso líquido negro, assim como fez Ramon, outro caravaneiro que, naquela noite, também quis café com pão e queijo. Antes de tomarmos o café, fotografei o ato de alcançar a mistura "café com leite", em Trujillo, e me lembrei de La Paz, onde a soma do leite com o café acontece da mesma forma. Sai dali e fui direto para o hotel; tomei banho e dormi porque o corpo pedia cama. No outro dia, acordamos bem cedo, como é de costume: quase todas as vezes que vamos pegar a estrada, levantamos às 4 horas da manhã, e claro que vamos para o ônibus cambaleando de sono, mas não demora, já estamos dormindo novamente.

De Trujillo, no dia 12 (sexta-feira) seguimos até Piura, e como eu já mencionei num post anterior, no caminho, trocamos o pneu do Inulatão (nosso querido ônibus que me pede um poema todos os dias). Em Piura, almoçamos, vimos seu centro comercial agitadíssimo, jantamos e dormimos. Ali também fiz meu relatório de viagem, conforme solicitado pela coordenação. Dormi muito tarde nesta noite. Todo o hotel dormia, estava tudo escuro: erámos somente eu e a luz do meu computador. Eu estava na área externa do hotel, havia árvores e eu ouvia suas folhas balançarem. Não sei dizer o que senti ao me ver assim no meio do mundo.



Saindo e indo para outro ponto




Deixamos Piura na manhã do dia 13 (sábado), após o café que foi servido com suco de mamão papaia. Escrevia no computador e me alimentava ao mesmo tempo. Sensação boa esta! Saindo dali, a estrada nos levou até Paita, onde ficamos algumas horas para que os documentaristas da Caravana fizessem algumas imagens. Paita é uma cidade muito quente, embora margeada pelo Pacífico. No mar, muitos barcos pesqueiros; na rua, muita gente andando e as mototáxis estilizadas do Peru: uma moto adaptada como se fosse um automóvel, dispondo de uma estrutura diferente, coberta com uma capa plástica e que permite levar pelo menos duas pessoas como passageiros. Tudo isso empresta à cena urbana de Paita uma unicidade que, em mim, foi ainda mais elastecida pela ida aos Correios, que ali se chama Serviço Postal do Peru ou algo nesses termos; não lembro ao certo.

Sentada na cadeira atrás de uma mesa, estava Irma, uma senhora gentil que me alertou que, para postar carta ali, eu tinha que preencher o envelope conforme a orientação que se encontra pregada no vidro do balcão. Olhei para aonde ela apontou e estava lá, grudado, um envelope como exemplo mostrando o remetente e o destinatário escritos na frente do envelope. Como ainda não tinha visto a dica, eu estava preparando - do jeito que eu sei fazer - os meus envelopes nos quais coloquei cartões-postais, quando ela me interrompeu já com um corretivo, rasurando o envelope. Atendi ao pedido de Irma e postei algumas correspondências; no remetente, escrevi: "Sarah caminhando pelo mundo com o olho expandido e o coração aquecido".

Minha conversa com Irma cresceu e ela me perguntou de onde eu sou. Respondi: sou do Brasil e, de ônibus, estou com um grupo conhecendo nove países da América do Sul. Ela ficou espantada, quis saber quanto custa a passagem do Brasil para o Peru e me revelou que tem uma imensa vontade de conhecer o meu país, embora tenha uma irmã que more nos Estados Unidos e lhe chame constantemente para que vá pra lá. Ai, como foi bom ouvir este sentimento de Irma pelas terras brasileiras! Ela pediu para ver o dinheiro do Brasil, eu tinha uma cédula de R$b 50,00 (Cinquenta reais) na carteira. Saquei-a, ela segurou por um tempo, sentiu a nossa moeda e me devolveu. E, após um envio de cartas tão recheado de emoção, só podia sair dali fazendo uma foto de Irma segurando os meus envelopes, que agora estão em alguma parte do caminho latinoamericano, rumo ao Brasil.

Estive duas vezes no Serviço Postal do Peru. Quando fui da primeira vez, eu não tinha dinheiro para colocar tudo que eu levava em minhas mãos. Mas, como estou guardando um exemplar da moeda de cada país, fui obrigada a sacar dinheiro novamente e, assim, pude colocar mais cartas tendo como destino a Bahia. Que delícia! Coloquei-as preenchendo o envelope como ensinou Irma e, desta vez, sai dali dando-lhe dois beijinhos. Segui caminhando, olhando os arredores e vi, em Paita, uma fila grande em frente ao banco que funcionava em pleno sábado; um cara rodeado de gente fazendo, com ajuda de outro, um desses números grotescos que são comuns em feiras livres e outros espaços; vi também o mar batendo levemente na areia; construções antigas com um ar de decadência e uma mulher conversando com um homem.



Mais caminho pela frente e nosso carnaval acontece




Saimos de Paita, após o almoço, e por volta das 21 horas chegamos na saída do Peru. A escuridão reinava, pois havia faltado energia elétrica. Ali senti uma estranheza no ar, pois o local parecia clandestino: cones na estrada e homens encapuzados indicando um atalho para seguirmos. Fomos e paramos numa estrutura de metal que fazia as vezes da saída do país que tem Lima como capital. Mas só descemos do ônibus, quando a energia retornou. Todos os trâmites foram obedecidos, mais um carimbo em meu passaporte e seguimos até a entrada do Equador, onde chegamos às 21h58min.

Esta precisão na entrada em terras equatorianas só foi possível porque até o momento o Equador dispõe da única fronteira, cujo registro de acesso ao país se faz por meio de uma máquina e não através de um carimbo convencional. Ultrapassada esta passagem, chegamos depois das duas da manhã, em Machala, já no dia 14 (domingo). Machala é uma cidade muito abafada, com muitos mosquitos e com ruas alagadas pela chuva que caia. Dormimos e no outro dia, após o café, tomado em um outro hotel, seguimos até Guayaquil, onde visitamos um parque, vimos iguanas e outros animais, almoçamos num shoppping e seguimos para o hotel.

A noite do dia 14 (domingo) foi maravilhosa. Dedicamo-nos ao carnaval, ou melhor, fizemos o nosso próprio carnaval. Pegamos o sentido da rua, compramos cerveja, mas não se pode beber nas ruas de Guayaquil, o que nos fez encapuzar as garrafas em sacos de papel para consumirmos álcool, enquanto caminhávamos. Andamos, andamos e andamos pelo pier, onde há o Espaço Cultural Libertador Simón Bolivar, e alcançamos o Las Peñas, bairro muito aprazível da cidade, com casarões antigos recuperados. Em cada casa há na fachada a sua foto antes da reforma. Gostei de ver o antes e o depois de cada canto daquele.
No Las Peñas há uma escadaria com 444 degraus, com muitas lojinhas de artesanato e bares, que lembra a Escadaria da Lapa, no Rio de Janeiro, feita por Selarón, artista chileno que enfeita de azulejos a escadaria do Convento de Santa Teresa; no topo da escadaria do La Peñas, há uma igreja e um farol. Ali no meio daquela escada, nossa folia aconteceu. Bebemos, rimos, dançamos muito, alegramos as donas do bar, que adoraram ter baianos como clientes em pleno domingo de carnaval, e, quando a chuva caprichou na oferta, deixamos o bar e resolvemos nos banhar em seus pingos fortes, ao som de um delicioso reggae. Foi muito bom e, no dia 15 (segunda-feira), pegamos a estrada até Quito, onde estamos desde às 23 horas deste dia, cheios de serpentina na alma. Um beijo Salvador!

Indo além na captação

Estou certa de que tudo corre para ficar na pele. O olhar engole todas cenas que me aparecem no trajeto, e eu insisto em me dar conta do que me surge, mas aos poucos os dedos vão ficando pequenos para apanhar os ininterruptos acontecimentos. Ao mesmo tempo, a curiosidade vai se deparando com os freios postos pela própria imensidão que é registrar, na memória, o que se passa numa viagem que, em dois meses, se propõe a conhecer nove países. Quanto fôlego!

Haja assuntos, caminhos, imagens, pessoas, idéias, vegetações, seres, sabores, cheiros, proporções, estranhezas, novidades; um mundão de realidades escorrendo sem parar sobre minha percepção. Em Lima, por exemplo, foi engraçado: eu apontei meu sentimento para perceber a cidade, mas talvez a capital peruana não tenha querido se mostrar para mim. Respeitei isso, e como é necessário respeitar uma cidade! Então, sai de lá sabendo muito pouco sobre ela, e, conversando com outras pessoas, por exemplo, soube que, ao contrário do que eu havia dito, em Lima, há uma linha de metrô construída, mas praticamente sem funcionamento.

E assim me pareceu a cidade: um lugar com um funcionamento estranho. Ôps, mas ainda que eu tenha tido uma relação distante com a cidade, quero registrar mais alguns movimentos meus em seus arredores: visitei o Pucllana - Museo de Sitio Parque Histórico Cultural, um parque que guarda os vestígios de uma pirâmide em plena urbanidade limense. É um parque muito artificial, mas, de repente, me vi ali pensando sobre arqueologia, e considero que esta ciência é uma boa companhia para saber mais sobre o lugar onde a civilização Inka escreveu parte de sua história.

Outra ocorrência que eu não gostaria de deixar escapar é que em minha última noite, em Lima, vi o carro de lixo com seus homens recolhendo os dejetos da cidade. Vendo aquela cena e sentindo o aroma de lixo que se espalhava pelas entranhas da noite, me senti acessando uma certa intimidade local. E juntando arqueologia e coleta de lixo, me vi tendo uma proximidade particular com Lima. Gostei de perceber que há de desabrochar diferentes formas de contato com uma cidade.

Eu me enfeito com flor para caminhar




No altar da memória

E é tão amplo tudo que sinto! Quero dizer, colar, expor minhas colheitas, mas não há tempo suficiente para partilhar, pois minha sede de rua pede que eu não deixe escapar nada, e eu obedeço. Sou viciada em obedecê-la. A úlima vez que aqui escrevi falei sobre minha relação com Lima e sua cercania. Passados alguns dias, dei-me aos caminhos que me trouxeram até o Equador, onde o mundo se divide - ui, isso permite muitas considerações que vão ficar para outra escrita, tudo bem? Estou repleta de sensações boas de serem levadas para o altar da memória. Que delícia!

12 de fevereiro de 2010

Estranho para mim

Antes de chegar no Equador, ainda há terra para percorrermos no Peru, e desde que saímos de Lima - o que aconteceu, quinta-feira, às 5 horas da manhã - já almoçamos em Chimbote, jantamos e dormimos em Trujillo, furamos e reparamos o pneu, ontem, em Chiclayo; almoçamos, jantamos e dormimos em Piura, e só vamos encontrar a fronteira com o Equador, amanhã. Mas, mesmo com um bom punhado de tempo dedicado ao Peru, confesso que o país não me tocou.

Estranho, mas é verdade. A impressão que fica é que para o Peru se justificar como destino a ser escolhido para uma viagem, obrigatoriamente o viajante precisa inserir em seu roteiro a tão desejada Machu Picchu, o que foi impossível para a Caravana, visto que o acesso às ruínas está muito ruim, após as fortes chuvas que se abateram sobre a região de Cusco, onde se pega o trem para lá. Ou seja, saio do Peru sem ter cumprimentado a badalada construção Inka.

Bom, mas, mesmo não tendo sido tão tocada por Lima, não deixei de construir duas grandes impressões sobre a cidade, e ouso a apresentá-las: é muito comum, em virtude da herança Inka na região, você tomar o refrigerante peruano Inkacola durante o almoço, depois, caso precise passar em uma farmácia para alguma finalidade, ir à farmácia Inkafarma, e prosseguir o dia, passeando no Inka Market e tomando uma cerveja Cusqueña, no Inkabar, ou seja, "inka" parece ser um prefixo obrigatório para se nomear as coisas, em Lima. A segunda observação é que Lima é um lugar onde forma e conteúdo parecem não ter correspondência. Em minha opinião, a cidade tem o esqueleto de uma São Paulo, mas a carne de uma Feira de Santana, ou seja, há um contrasenso entre seu tamanho e seu conteúdo.

Comunico, então, que em quase quatro dias em Lima, atravessei poucas ruas, comprei alguns presentes - esta parte foi boa -, visitei o Museo de la Nacion, onde vi obras pré-hispânicas; não encontrei estrelas no céu, dancei salsa, peguei táxi, visitei o Palácio do Governo, estive na Plaza del Armas, onde há jardins lindos com flores amarelas e laranjas lhe enfeitando e a cor mostarda se destaca entre suas construções, que têm muxarabi como adereço; fiz poucas fotos, experimentei suco de milho preto, e gostei; tomei meu melhor banho de toda a viagem e ouvi muitas buzinas no trânsito. Conclusão: preciso voltar ao Peru, para atravessar mais ruas em Lima e conhecer Machu Picchu.

10 de fevereiro de 2010

Lenço que ilumina




























Sem sequência exata para a partilha do que estou vivendo, sigo no ritmo gostoso da descoberta , dançando a ciranda, que roda, roda, roda, e, freneticamente, me coloca encaixada com o ato de aprender. Hoje, ainda em Lima, me senti chamada a trazer para o Conversa da pele com o tempo, elas, as Mães da Praça de Maio, que, com uma firmeza incomparável, ensinam o mundo a acreditar na mudança positiva. Elas deslizam poderosamente em cima, embaixo, atrás; enfim, em todos os lados da palavra "crença". E, quando pergutamos, se seus filhos aparecessem, elas encerrariam a caminhada, elas, com uma energia vulcância, dizem: "de jeito nenhum; claro que continuaremos a caminhar, pois o que buscamos é o câmbio político".

9 de fevereiro de 2010

A bagunça boa da memória

Numa viagem em que tudo se converte em caminho, e os caminhos viram história, e a história vira palavra, que vira fotografia, que vira registro e se faz lembrança viva, as narrativas não conseguem seguir a ordem como ocorrem os acontecimentos. Um mosaico de episódios se estrutura na memória, as células assimilam o que conseguem e o tempo vai dando conta de emoldurar as telas mais marcantes. Estou sentindo isso na pele. Para escrever sobre Lima, por exemplo, falei das cidades de Puno e Arequipa, cujas fotos deveriam ter sido colocadas antes do texto sobre a capital do Peru. Quando me dei conta, ficou Lima lá embaixo e as fotos mais em cima. Hum! Mas, desconfio que isso não tem a menor importância, o que importa mesmo é viver Puno, Arequipa e Lima, e tudo estar em mim, reunido numa mistura que produz um sumo delicioso: o sumo da vida expandida. Eu gosto!