30 de dezembro de 2011

Pra lá de Ichu? Nem tanto




Quando eu vim estudar na Université de Strasbourg, minha amada família ofereceu um churrasco no quintal festivo da casa dos meus pais, em Feira de Santana, cidade onde nasci. Foi uma delícia. Houve comida gostosa, abraços calorosos, orações poderosas e lágrimas de despedida. Fiz questão, claro, de guardar muitas das frases que naquele domingo eu escutei. Afinal, eu tinha estado em contato com um circuito de enunciados de bem-aventurança, e seguir a vida, levando na escuta contínua - que é aquela escuta que não se encerra quando o diálogo finda, pois ele permanece silenciosamente para além do momento em que aconteceu - palavras que advém de momentos, nos quais o desejo de boa sorte se compõe como a nuance mais viva, é energizante para quem vai ficar um tempo longe dos seus.

A animação dava conta de enobrecer as horas, a gente ia comendo a carne cuidada pelo meu tio Sávio, churrasqueiro da família, quando outro tio olhou para meu avô e perguntou: "pai, o senhor sabe pra aonde Sarah tá indo?". Meu avô Ziquinha, figura particularíssima e que, dentre as atividades já realizadas, está o comércio da manteiga, respondeu: "eu, não, João". Meu tio soltou um riso carinhoso e lhe disse: "Sarah tá indo pra lá de Ichu, pai". Gente, eu adorei esta forma do meu tio localizar meu avó de quase 90 anos em relação às minhas andanças. De cara, isso deixava meu percurso mais ousado e dava um tom nordestino à minha partida, que eu aprovei em demasia.

Mas, a frase do meu tio João ficaria ainda mais bonita quando ganhei o primeiro presépio da minha vida e ganhei exatamente em solo francês. Maria, José, Jesus, os Reis e os animaizinhos me chegaram pelas mãos dos meus amáveis vizinhos Luc e Myriam. Quando eu os recebi, ainda no saquinho para que eu mesma os montasse numa caixa, eu pulei de alegria. E olha Ichu, que está situada na região sisaleira da Bahia, me aparecendo junto com o presépio e me mostrando que França e Ichu nem são tão longe assim! É que, quando pequena, meus pais visitavam algumas famílias nas noites próximas à noite do dia 25 de dezembro. Em muitas casas havia presépios e minha ansiedade maior era para ver o de Antonieta, esposa de Toin Chiba, nascido em Ichu e que trabalhava com meu pai. Ela realmente caprichava, havia até água escorrendo como se fosse uma fonte molhando o jardim que antecedia a manjedoura. Era lindo seu trabalho.

Chiba, um homem bem alto e bem magro e bem invocado, mas bem engraçado também, tinha muitas histórias. Ichu, sua terrinha, era conhecida como o lugar onde o povo saboreava tudo com muito açúcar: o café, o bolo, o doce de leite, o biscoito de nata. Dizia-se que quem vinha de Ichu tinha mãos pesadas para o açúcar. Já aqui, por estas bandas francesas, o paladar não estranha, nadinha, nadinha, um café puro, sem nenhuma gota de doce acrescentada, portanto, Ichu e França são dois opostos no que se refere à "adocicação" da vida. Mas, foi bem aqui, que no mapa, segundo meu tio, de Ichu passa longe, que Ichu me chegou nas pecinhas do presépio que ganhei de presente e me devolveram as criações inteligentes e cheias de efeitos que Antonieta, de Toin Chiba, fazia e que deixavam meu Natal ainda mais iluminado na infância.

Ah, e emprestar minhas mãos para montar meu primeiro presépio foi algo que eu fiz com tanto, tanto amor, que eu quero desfilar com ele em Ichu, e dizer: "ói, tu nem é tão longe assim da França, sabia? Ainda que vocês duas tenham opiniões tão diferentes sobre a quantidade de açúcar no café". 

26 de dezembro de 2011

Passagens

Impossível anotar os pensamentos que me chegam nos minutinhos que antecedem o sono, pois são muitos e em vários idiomas. O pão continua sendo saboreado com atitude, a bicicleta anda um pouco de lado, ainda que eu tenha me esforçado bastante para circular com ela sob as baixas temperaturas que já fazem por aqui, e o vinho é mesmo aquele item que não pode faltar. Começo a ver minha memória muito mais como vasos comunicantes que como gavetas de um móvel. Assim, tudo se encontra e se embaralha, como é mesmo a tônica da vida. Repico a efervescência, misturando-a com tudo que posso e extraio dimensões extensas de momentos bem simples, como atravessar a rua, por exemplo. As aulas na universidade tomaram rumos não sabidos e o modelo de prova na França me espantou: os alunos chegam a passar oito horas seguidas, testando os conhecimentos adquiridos. Perdi um monte de frases criativas que me chegaram pedindo adesão, pois a correria não me permitiu ancorá-las sobre o papel. Mas, se perdi frases, o amor desembarcou e está aqui desde outubro, ganhei mais amigos, agreguei novas palavras em francês, uma casinha linda nos chegou como moradia, fomos à Paris, Suíça e Amsterdam, e um ritmo de comemoração permanente me convida a dançar e eu estou sempre indo.