30 de abril de 2012

Nenhuma impessoalidade


Entrego-me aos rituais de despedida e vou ao mercado do bairro onde aos sábados fazia compras. Neste um ano aqui, por duas vezes, quando eu estava no caixa para pagar o que eu havia adquirido, me dei conta de que eu havia deixado o cartão de crédito em casa. E nas duas vezes contei com a confiança dos funcionários. Eles registravam tudinho, enquanto eu vinha em casa, correndo, e apanhava a carteira. Voltando, eu pagava e agradecia alegremente pela gentileza prestada. Aí fiquei conhecida como a-madame-que-esquece-a-carteira. Virou até graça isso. Mas, hoje, não teve muita graça quando eu comuniquei ao segurança Joseph que eu vou voltar para o Brasil. Ele não acreditava no que eu dizia, apertava minha mão com saudosismo e eu lhe explicava que minha bolsa de estudos acabou. Ele então me perguntou como eu vou viver no Brasil; quis saber se eu já tenho emprego e eu lhe disse que ainda não. Ele apanhou seu terço no bolso e, com fé, me disse: "não tenha medo, Sarah, vai dar tudo certo e use sua capacidade intelectual". Eu escutei, movimentando a cabeça num prolongado sinal de SIM e sai da minha última compra no supermercado de sempre, bastante emocionada ao ver a relação que seus funcionários e eu construímos. Como sou grata ao elo nada impessoal que a França e eu desenvolvemos.

Banhada pela chuva.


O que eu colecionei? Quais coleções carregarei comigo? Na coleção de quem eu entrei? O que desta praça onde estou pela primeira vez vai restar em mim daqui a alguns anos? Classifico como sagrada a chuva que me banha antes da minha partida para o Brasil. Por isso, deixo-me por ela ser lavada. 


Avisto um homem que anda devagar. Suas roupas são da mesma cor da casa onde ele agora transita. Uma lágrima cai do meu rosto e eu sorrio para este choro que sai de mim como gratidão a tudo de grandioso e belo e forte e único que minha vinda para a França me deu, a tudo de grandioso e belo e forte e único que minha vinda para a França me deu (repito em voz alta esta deliciosa frase). 


Enquanto o homem que caminha tem roupas da cor da casa, eu estou vestida com a cor dos jardins. Olho mais distante tentando alcançar algo que meus olhos ainda não sabem e me dou conta de que estou deixando um país que vive a escolha do seu próximo presidente. Eu, eu vivo a saudade deste país. 


Ontem foi meu último domingo na doce Strasbourg. Andei sem destino por ruas desconhecidas, fotografei casas, vi crianças brincando e homens se divertindo em torno da mesa de pingue-pongue do parque; fui abordada por uma senhora que queria informação sobre o bairro que não é o meu de morada. Escutei trovões, andei mais - e mais um pouco e mais um pouco e mais.

26 de abril de 2012

Escuto para arrumar minhas malas



Sigo caminhando na apreciação viva deste belíssimo lugar onde minha vida se ancorou por um ano. Quantas lindezas agregadas ao meu corpo e à minha alma! Quantos novos olhares, quantos novos sentidos agora eu conheço. Sinto-me em contato permanente com o néctar do mundo. Há vastidões me povoando e me dando tanto, tanto mais do que eu tinha e sabia antes de me deslocar para a França, onde a felicidade se colou à minha pele e me disse que realizar sonhos é mesmo uma das mais valiosas dádivas da vida. E cá estive e estou, sendo, fazendo, cantando, dançando e agradecendo, agradecendo, agradecendo. Obrigada, Deus! Obrigada, Strasbourg! Dedico-me à arrumação das malas, sabendo-as muito mais abastecidas do que quando eu vim para cá. A elas todo meu amor e meu carinho. E como são tão especiais para mim estas minhas malas, escolhi como trilha sonora para prepará-las este concerto que me faz chorar e celebrar, com o coração acelerado, o dom de ser feliz. 

17 de abril de 2012

Já me vou, mas antes, invento âncoras

17 de abril de 2012: um ano que eu moro em Strasbourg, na França, e há poucas horas, indo da estação de tram Landsberg em direção ao número 28 da Rua de Benfeld no bairro Neudorf, onde está minha casa: um apartamentinho lindo caiado de amarelo por fora e laranjinha por dentro, peguei-me andando muito mais lentamente do que de costume. Dedicada estive à apreensão dos detalhes das construções, às crianças brincando no parquinho público, ao movimento da padaria e à beleza das árvores que enfeitam o percurso várias vezes feito por mim e que, em breve, sairá da minha rotina. Meu retorno para o Brasil aponta no calendário. Sinto-me, por isso, chamada a guardar cores, cheiros, sabores, tempos, verbos, fisionomias, texturas e curvas da cidade que, sem pressão alguma, me convocou ao apuro da observação. Transformarei em âncoras as capturas que fiz nesta terça-feira a caminho do meu endereço. Portanto, mesmo geograficamente distante da cidade das pontes com flor, eu continuarei à ela vinculada. Não há como eu me desvencilhar do ponto do planeta que me fez expandir o olhar sobre o mundo, me permitiu rever quem eu sou, me deu as dicas para eu aprender a relocalizar importantes referências e me mostrou que "fronteira" e "pertencimento" são duas palavrinhas muito mais cheias de significado do que eu imaginava saber, antes de cruzar o Oceano, porque durante 12 meses eu tinha mesmo que deitar a cabeça sobre um travesseiro internacional, após cada dia deliciosamente desvendado.

13 de abril de 2012

Horinhas com comida para a alma







Quando chegamos à casa da minha doce amiga Dominique na Segunda-feira de Pâscoa, ela nos recebeu com um sonoro "Bom dia", bem assim em português para deixar os ouvidos da minha família acarinhados e certos de que encontros são encantos da lida feitos para os corações se conectarem.

Se Dominique pronunciou seu mais lindo e perfeito "Bom dia", agarrou minha mãe em um dos seus braços e minha irmã Cláudia noutro, para que nelas se apoiassem e subissem os degraus que dão acesso à sua charmosa casa, meu vizinho, o agradável senhor Sanchez, passou toda a tarde que antecedeu o jantar que ele e sua adorável esposa nos ofereceram, colhendo informações sobre Brasil a ponto de um pouquinho antes de saborearmos o maravilhoso Chucrutes (comida típica de Strasbourg), preparado pela madame Myrian, ele falar: "para ir do norte ao sul das terras brasileiras é necessário percorrer 4.397 quilômetros".

Pronto: estava dado o comando para todo um diálogo sobre caminhões e estradas se desenrolar entre painho e o Monsieur Sanchez, que quer ir ao Brasil e rodar seis mil quilômetros no caminhão da Rodoasabranca. VIVA!

Magnífico notar que em algumas horinhas usadas a favor da felicidade, vivemos o suficiente para guardarmos em nossa memória um rico almoço, no qual alimentamos a esperança da esquerda vencer as eleições presidenciais na França, meu pai diluiu uma antiga dúvida de Martine sobre a coloração dos pimentões, minha mãe externou seu amor pelos vinhos e Cau se encontrou lindamente com o creme de sobremesa mais vivo que já vimos.

No dia seguinte, com mais algumas horinhas de vida abençoada, depositamos em nossas lembranças um jantar povoado dos mais variados assuntos e encerramos a noite com uma gostosa partilha das expressões populares. Nós pronunciamos: "quando Deus fecha uma porta, ele abre uma janela" e coube aos nossos vizinhos afirmarem: "Quand une porte se ferme, une autre s'ouvre".

Duas refeições com grande poder de nos alimentar para além do momento em que aconteceram, e nas duas o brinde foi harmoniosamente feito em nome da União dos Povos do Mundo. E que este dia chegue.


2 de abril de 2012

A vida e suas delícias


Para minha alegria, meus pais e minha irmã me farão uma visita. Será a primeira viagem internacional de painho e mainha. Dois brasileiros que sabem muito, muito bem o significado do suor derramado. Meu pai trabalha desde os 11 anos de idade, minha mãe desde os 18. Hoje, ele está com 63 anos, ela com 62. São literalmente um guerreiro e uma guerreira para a jornada diária do pão-de-cada-dia. Após muitos anos de construção árdua, chega a oportunidade de cruzarem o Oceano e conhecerem um pouquinho do Velho Mundo. Escrevo para os três um email com várias coisinhas sobre a chegada aqui e o que vamos fazer nos dias em que estarão comigo, e me dou conta: tenho uma vida do lado de cá para mostrar aos meus. Estou me sentindo tão, tão, tão abençoada.