29 de março de 2012

Feliz Aniversário, Salvador



O aniversário de Salvador chegou e eu ainda guardo na garganta todas as palavras não ditas sobre a greve da Polícia Militar deflagrada nas vésperas do carnaval, de modo que fico meio deslocada para saudá-la, hoje. É como se eu fosse aquela amiga que se lembra da festa de aniversário da amiga, mas não dá a mínima para a dor que a consome, quando atravessa um problema.

Eis que agora diante desta inquietude que me desassossega um pouco, concluo que, do ponto de vista textual, é mesmo muito mais fácil elencar palavras comemorativas do que desenvolver frases reflexivas e dotadas de um teor crítico como, por exemplo, necessita uma greve da polícia.

Para mim, as greves são sempre grandes laboratórios para se observar os lados, os não lados, as linhas divisórias, as tensões, as contradições e as complexidades de uma sociedade. E em se tratando da greve daqueles que, quando outras categorias fazem greve, eles são os que ali estão prontos para inibirem o grito, o nó cresce, e muito.

Logo, se posicionar, pensar, refletir sobre uma contestação deste porte requer tempo, concentração, esforço, e estes elementos eu não os tive para oferecer quando a densidade tomou conta da Bahia no mês de fevereiro passado. Sinto certa culpabilidade por isso, mas minha vida está temporariamente sendo tecida na terra do outro e esta fixação me deixa diante de um universo enorme a ser descoberto, de modo que me sobra pouco espaço interno para aquilo que está para além do agora vivíssimo e pulsante que se instala continuadamente em minha frente.

Eu não nasci em Salvador; nela morei/moro e ralei muito para estruturar minha existência lá. Feirense, sou, portanto, menina vinda do interior e que inicialmente se relacionou com a capital como o cantinho onde passava as férias, pois na minha infância minha mãe trabalhava na Farmácia Silva e isso lhe garantia o perfil “mulher comerciária”. Logo, toda família podia usufruir da Colônia de Férias do SESC, na praia de Piatã. Eram deliciosos nossos abençoados dez dias naquele repousante lugar. 


Conclusão: comecei a gostar de Salvador desde cedo e numa situação muito cômoda. Afinal, só acessava sua parte boa. Éramos as ondas do mar e eu, com meu pai me ajudando a pulá-las, de modo que somente muito mais tarde (eu me graduei na amada Universidade Federal de Sergipe, portanto, só comecei a ser aluna da UFBA no mestrado) eu conheci as mazelas da cidade, e isso exatamente quando aos 21 anos eu fui tentar a vida como jornalista em suas redações, o que foi uma luta bastante dolorosa.

Quando a greve se instalou, surgiu em mim um misto de sentimentos e vários textos foram escritos mentalmente, mas eles se perderam porque além da falta de tempo para a redação do texto, outra coisa me fazia frear os dedos ao escrever. É que em certa medida eu me sentia desajeitada para falar de Salvador numa condição de moradora da França; não sei, não sei se eu sentiria isso se eu estivesse noutro país. Mas veio um desconforto por dentro que eu não sei muito bem explicar. Isso porque parece que o fato de estar na Europa deixa a pessoa com menos legitimidade para abordar os temas problemáticos do país.

Desconfio que este receio de escrever tenha surgido porque, certa vez, preparei um textinho para dizer o quanto eu estava amando sentir a maneira como a música clássica ambienta a cidade de Strasbourg, onde eu estou morando. Em nenhum momento disse que isso era mais legal do que as batucadas que se espalham pela Bahia, mas rapidamente uma amiga saiu em defesa da Orquestra Sinfônica da UFBA, como se minha admiração pelo universo do outro já demarcasse uma distância das minhas referências, o que não é verdade. Para mim, este é um ângulo muito pequeno de observância em relação ao que a descoberta de outro repertório cultural pode promover a alguém.

Minha intenção era apenas dizer como é prazeroso conviver num lugar em que pianos são tão presentes na vida cotidiana e de modo algum eu fiz isso hierarquizando instrumentos musicais, mas, sim, valorizando também o modo de musicalizar que o outro detém. Retomo este mote porque, para mim, ele traduz um pouco o comportamento de Salvador, visto que se trata de uma cidade, em minha opinião, muito auto-referente. Digo isto porque é como se eu a escutasse dizer: “sou a cidade do Salvador, a cidade dos encantos e axés” – e é mesmo – “e isso basta para eu ser amada, querida, desejada, procurada pelas pessoas, então eu não preciso de grandes projetos, iniciativas, pois sou bonita e pronto”. Bem ao modo narcisista: “sou bonito/a, logo eu me garanto”.

Salvador, você é mesmo linda, mágica, repleta de sabores mil, mas nenhuma cidade se sustenta exclusivamente sobre estas referências. Olho para você e me pergunto quais projetos ousados e inteligentes existem e que são capazes de garantir a seus limites geográficos aspectos que ultrapassem a natureza, o mágico, o abstrato, que são, sem dúvida, itens valiosíssimos para uma sociedade, mas que não dão conta de sozinhos ancorarem por mais de quatrocentos anos uma cidade com mais de 2,5 milhões de habitantes.

Mas vamos lá, eu quero lhe parabenizar, sim, lhe parabenizar pela sua efervescência. Mas quero também lhe deixar o seguinte recado: não se encerre aí, bonita, e que nós saibamos em e com você construir uma cidadania à altura da sua beleza e da sua magia, para que a colcha de retalhos entre o transcendente e o prático fique satisfatoriamente tecida, entrelaçada, harmonizada e a gente cresça como gente, como lugar, como vida experimentada e gostosa de ser construída.

E como estou aqui a falar dos lados de uma cidade linda, não sairei destes escritos sem redigir algumas linhas sobre a greve dos policiais e que eu meti aqui no meio.

Preciso confessar que das muitas abordagens que eu poderia fazer sobre o que esta greve me causou – e estas sensações foram bem particulares, em virtude do acompanhamento a distância – muitas ficariam sem frescor passados 58 dias do seu término, de modo que vou me ater a um olhar sobre as estratégias dos grevistas, embora saiba que há tanto mais a ser falado no que se refere à reação da sociedade, à cobertura midiática mal feita, à construção de significados equivocados sobre a presença das forças armadas nas ruas, à inabilidade do governo para dialogar com o comando de greve, à crise da representatividade, à construção questionável de líderes, à divisão de opiniões entre os que apoiaram o cancelamento de atividades como os shows, por exemplo, e os que consideraram isso um insumo para a construção de autoridade dos policiais que se viram extremamente “úteis” à proteção etc.

Mas, no âmbito das estratégias ao qual, como eu disse, vou me ater, a presença das famílias na Assembleia Legislativa durante as negociações me leva a indagar quais são os aliados numa greve. No caso dos policiais, a família? No caso dos professores, os estudantes? Numa contestação, conta-se com quem? 

Salvador, que em suas contestações para a construção de uma vida digna para todos e todas você conte com todos nós.

8 de março de 2012

Minha oração de hoje


Amadas mulheres e amados homens viventes deste mundo, onde nós, mulheres, pelas razões mais questionáveis que já sabemos, fomos construídas como a parte que precisou e precisa insistentemente lutar para se compor como Detentora de Direitos, desejo um Dia de FÉRTEIS sentimentos e VERDADEIRAS mudanças de atitude. Que saibamos, amadas e amados, escoar nossas diferenças, não, para a vala das hierarquias vazias, mas, sim, para o canal das edificações grandiosas, das lindezas vastas e das ações plenas de força.

Sarah, na terra onde nasceu Simone de Beauvoir