11 de outubro de 2011

Chance de transpor a mecanização

Os apelos feitos pelos meus olhos eu não me privo de corresponder. Asseguro: obediente eu sou ao desejo deles de verem muito e amplamente. Mas, as atividades diárias têm me tomado o suficiente para a escrita ficar um tanto quanto escondidinha. Hoje, entretanto, eu me contorci por inteiro, da ponta do pé ao fio do cabelo, até encontrar uma lasquinha de tempo para abraçar as palavras e, em seguida, florir este espaço que me ajuda a seguir.

Então, vamos lá...

Em mim permanece incessante a vontade de partilhar as observações provocadas pelo deslocamento geográfico que se chama: saída de Salvador-Bahia-Brasil para morar por um ano em Strasbourg-Alsace-França. É bem verdade que em alguns momentos eu já me senti como naquelas viagens que fazemos para participar de um congresso, e o danado acontece justo numa cidade superbonita. Mas, precisamos assistir a seminários, apresentar trabalho, encarar reuniões, de modo que ficamos completamente divididos entre dar conta do recado e aproveitar os atrativos do lugar.

Em certa medida, minha vida na França preserva um pouco deste tom. Afinal, embora eu me sinta chamada para fotografar incansavelmente, conhecer muita gente, me apropriar da gastronomia francesa, melhorar o aprendizado da língua, amar meu amor, viajar muito, produzir um livro, enfim, não parar jamais o ritmo desenfreado do realizar poético, tenho o dever de redigir uma tese, o que demanda altíssimo investimento intelectual e é o que justifica minha vinda para cá.

Sem dúvida, são mesmo imperativas as exigências feitas pela pesquisa que eu preciso desenvolver, mas ainda que seja esta uma realidade, eu localizo, óbvio, uma grande diferença entre minha vivência aqui e uma viagem feita para participar de um congresso em Florianópolis, por exemplo. Mas, a diferenciação que eu faço não se baseia apenas na quantidade de tempo envolvida, visto que um evento científico dura alguns dias e aqui eu vou morar por 12 meses; a distinção se centra no fato de que minha passagem pela França representa, em todos os sentidos, um caminho aberto para o desconhecido e, por isso, a própria rotina já é besuntada de delícias, surpresas e novidades.

Tenho a ligeira impressão de que fazer a travessia da nossa cultura em direção à cultura do outro é viver os dias permanentemente sob as autorizações de uma licença poética, já que tudo, tudinho mesmo, ainda que seja bem, bem ordinário - no sentido do fluxo do cotidiano que se repete, se repete, se repete - ganha um verniz e dispara algo frenético dentro da gente. Pelo menos é assim comigo. Vou ilustrar como acontece. É mais ou menos assim: eu escovo os dentes pela manhã. Não há nada mais rotineiro do que este ato, certo?

Mas entre a água que entra e sai da minha boca, brota a curiosidade para desvendar qual a relação dos franceses com a escova de dente. Eles fazem uso dela quantas vezes ao dia? Eles costumam levá-la na bolsa para usar após o almoço? E aí me dou conta de que, ao contrário dos banheiros das universidades brasileiras, onde no espaço de tempo entre 13 e 14 horas é muito comum ver a galera escovando os dentes, aqui esta cena jamais foi vista por mim. Minto: vi somente uma vez e a escovante nasceu no Brasil.

E no caso da ausência de escovação de dentes nos banheiros da universidade, faço logo uma conexão entre espaço público, vida privada, relação com o corpo, zelo pela intimidade e por aí vai. Ôps, que pressão a minha... Mas, é isto, gente: é a licença poética funcionando. Outra demonstração do ordinário que vira algo mais: se preciso ir ao supermercado fazer as compras habituais, sou tomada pela necessidade de confirmar se é verdade que na França a grande maioria dos profissionais que trabalham no caixa é mesmo mulher, tem mais de 40 anos de idade e o cabelo é loiro. Será esta uma regra? Claro que esta pergunta tem um aro de ficção forte envolvendo-a, mas é que noto o quanto as pessoas dos caixas têm este perfil.

Creio que o barato de passar um tempo fora da nossa aldeia é render homenagem às interrogações e não ao juízo de valor, que é, muitas vezes, não posso negar, o percurso mais rápido e imediato que pode vir a ser feito por quem penetra um universo dotado de códigos bem diferentes dos que conhece. Percebo que adentrar o espaço do outro pode ser um bom convite para nos (des) mecanizar, na medida em que, facinho, facinho, o ordinário vira extraordinário e temos a chance de transpor a perspectiva funcional das práticas cotidianas, rechear a continuidade da lida com uma curiosidade transbordante, que, no mínimo, resultará em um caldeirão de assuntos e boas histórias para contar.

Mais outra prova do que eu estou afirmando: outro dia, entre ver um filme no cinema e ir ao Centro de Exposições, onde acontecia uma destas feiras que em Salvador eu só iria se eu tivesse uma compra a fazer, pois tratava-se da demonstração de móveis, materiais de construção, roupas, artigos de decoração; eu rapidamente optei pela segunda alternativa. Se eu estivesse em minha cercania, claro que eu escolheria curtir as emoções proporcionadas pelas sala escura, a menos que, como eu já disse, eu precisasse comprar uma mesa, por exemplo, e tivesse, portanto, que me relacionar de forma utilitarista com a feira.

Mas, em Strasbourg, onde já fui algumas vezes ao cinema e sendo a tal feira de variedades algo temporário e que acabaria dois dias depois, fui ao Centro de Exposições, sim. Fui para contemplar, não para assumir o lugar da consumidora, e tudo chamava minha atenção: os preços caríssimos, a disposição dos estandes, o público presente, o pessoal da organização, a comunicação visual, a inexistência de meninas esbanjando beleza para venderem algum produto, e o mais intrigante: como foi uma feira internacional, havia representantes de muitos lugares e, para alimento da minha inquietude, notei que os estandes da Itália, Alemanha, França, Espanha eram os responsáveis pela exibição dos artefatos tecnológicos moderníssimos, enquanto os dos países da América Latina funcionavam como os guardiões do colorido artesanato. Na lata me veio a pergunta: até quando guardaremos esta divisão desigual de poder econômico?

Pronto, é isto: morar fora do nosso país por um tempo é, para mim, converter todas as ações, desde o escovar os dentes à entrada numa feira de artigos para casa, em brecha para alargar o olhar. E cá pra nós: isso é muito valioso, não? Então, gente, estou na França me deixando ser tomada por uma avalanche de interrogações, sem necessariamente tecer o caminho que me levará às respostas. Afinal, há sempre o risco do enviesamento. Concordam? E, para completar: eu de-ci-di-da-men-te detesto conclusões rápidas. Por isso, estou, por enquanto, preferindo ficar no âmbito das perguntas desengonçadas, imprecisas e até inúteis.  

4 comentários:

  1. Adorei.
    "Por isso, adoro ficar no âmbito das perguntas desengonçadas, imprecisas e até inúteis." Porque na verdade são as perguntas que fazem o mundo girar, despertam, encantam. Nos fazem perceber a vida à nossa volta com outros olhares e querer descobrir sempre mais além do que se vê.

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  2. Aff! Que delicia, adoro quando entro aqui e vejo tannnnntas palavras!
    istei dessas curiosidasdes, que aqui pra nós, eu também as tenho: rotina foa do Brsil, cmo será? E seu olhar de futura Drª encontra muito mais perguntas, e nós aguardamos as "respostas"...
    Bjs

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  3. ... Volto, o que eu quiz dizer, a cima é que GOSTEI, das curiosidades.

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  4. É realmente,os costumes de outro mundos, sempre nos desperta curiosidade! E é bom que seja assim! Não teria graça nenhuma se fosse tudo igual!
    Quanto a conclusões rápidas, parece que não vou concordar muito com você não Sarinha! Mas isso também não teria graça risos. Digamos que suposições ainda que não sejam definitivas, tem que haver, pra ajudar a chegar às conclusões!

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