15 de abril de 2010

Corresponsabilidade não assumida

Eu estava acompanhando a edição do Jornal Hoje de alguns dias atrás, no período em que as chuvas geraram profundos danos no Rio de Janeiro, quando a jornalista Sandra Annenberg, âncora do Jornal, após a exibição das imagens que demonstraram a dor das famílias cariocas que, irremediavelmente, perderam tudo: pessoas, casa, documentos e tudo mais que não há nomes para nomear, disse: "nós, jornalistas, somos treinados para cobrirmos tragédias". Não acreditei no que eu escutei e tive uma reação de repulsa a esta afirmativa. Sou jornalista. Estudei na Universidade Federal de Sergipe (UFS), onde tive professores e professoras de todos os tipos, mas nenhum me ensinou a cobrir tragédia, nem eu nunca achei que pudesse ser este um aprendizado a colher na graduação em Comunicação Social.

Não, Sandra Annenberg, nós, jornalistas, não somos treinados/as para cobrirmos tragédias. Se você aprendeu este equívoco na universidade, saiba que erraram, e muito, em sua formação. Mas, ainda que tenham lhe dito esta insanidade, você, no largo exercício da profissão, poderia ter investido no desmanche deste absurdo e construído uma percepção mais humanística do papel do/da jornalista na sociedade, que para ficar somente na acepção da professora Raquel Paiva, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), este/a seria - guardadas as devidas proporções - o que equivaleria ao narrador, narradora da sociedade, leitura que - eu sei - merece ponderações, uma vez que narrar a vida social é uma possibilidade que deve ser exercitada por qualquer cidadão/cidadã. Afinal, a Comunicação é um direito humano.

Mas, quando chama atenção para o lugar da narrativa sobre aquilo que pipoca na vida social, a professora Raquel Paiva alerta para o olhar que as notícias devem lançar sobre a realidade. Cabe ao jornalismo a observância daquilo que transcorre nos quatro cantos de uma cidade, no sentido de detectar as cenas urbanas que, se comunicadas, podem ser alvo de mudanças. Então, pergunto: por que a Rede Globo de Televisão, dispondo de significativas equipes de repórteres no Rio de Janeiro, não denunciou os riscos de desabamento no Morro do Bumba? Mesmo contando com helicópteros e outros equipamentos de observação da realidade, no estado que inclusive é a preferência da Globo para a gravação de novelas e outros produtos, a emissora não noticiou a grave situação do Morro, onde o lixo era o alicerce das casas, e assim não pressionou o poder público para que este tomasse a providência de realocar as famílias para um espaço onde houvesse dignidade e bem-estar social.

Após o desastre que retirou a vida de mais de 40 pessoas - as estimativas é que este número cresça, pois os bombeiros ainda não concluíram o trabalho de resgate dos corpos - a frase a ser dita não é: "somos treinados para cobrirmos tragédias". Não vou negar que o exercício do jornalismo cruza com situações trágicas no caminho, mas, no caso do Morro do Bumba, a tragédia poderia ter sido evitada; havia estudos acadêmicos feitos há um bom número de anos, e talvez, se o jornalismo realmente cumprisse seu papel de revelador da dinâmica da vida social e denunciasse aquela realidade, fazendo pressão ao poder público, outra cidade poderia existir, hoje.

6 comentários:

  1. Muito bom. Esses jornalistas globais se acham deuses do tudo e por isso mesmo se embriagam nas mais diversas nuanças da vida. Pobre jornalistas que pouco e quase nada enxergam o alcance deseus comentários.

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  2. Oi Sarah
    Vc demora a aparecer, mas quando o faz, nos bota para refletir, e nos comove com a sua senssibilidade e percepção, de uma realidade tão dura!
    Parabéns pelo texto.
    Bj

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  3. Olá Sara,fico feliz ao constatar sua sensibilidade e seu discernimento que diferencia das(os) jornalistas globais!
    PARABÉNS pelo pela sua lucidez! EXCELENTE COMENTÀRIO!

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  4. Oh Sarinha, pois é. Essa história da objetividade jornalística até hoje rende, né? Nessa mesma tragédia, uma figura admirável como Caco Barcelos critica a repórter por não querer expor a dor d uma mulher ao perder o filho. Segundo ele, ela poupou a fonte porque se envolveu e um repórter não pode se envolver com a fonte... Essas aulas de jornalismo da Globo me chocam um pouco. Preciso seguir seu blog mais vezes! Bjs

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  5. Forte o seu texto, Sarah, bem escrito... Gostei de sua reflexão, excelente. Voltarei aqui mais vezes. Grande abraço, Ângela Vilma.

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  6. Ângela, que bom receber seu retorno e saber que se identificou com o texto. Obrigada pela visita e apareça mesmo mais vezes. Vou gostar muito. Afinal, sua leitura é preciosa.

    Um abraço,
    Sarah

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