26 de maio de 2011

Penso mais do que como

Ponho-me a escrever e minhas mãos correm para folhear a caderneta onde, sentada em algum lugar, caminhando pelas ruas ou mesmo em pé numa estação, deposito minhas impressões. Vejo-me a vasculhar as anotações, os cheiros apreendidos, os pedaços de cidade que, ao longo dos dias, vou apanhando e colecionando. Sinto vontade de guardar absolutamente tudo que manuseio. Sei lá, há horas em que penso em fazer um mural gigante com o que recolho, há outras em que desejo editar uma brochura, contendo os rastros deixados em mim pelas terras francesas.

Bom, mas qualquer que seja o resultado que as absorções que venho realizando durante esta experiência consigam gerar, seja um livro, um filme ou um álbum de fotografias bastante enfeitado, é verdade que tenho comigo guardanapos pegos nos mais diferentes cafés onde estive, etiquetas de coisas compradas, rótulos dos produtos adquiridos para a limpeza da casa, os ticketes utilizados no tram urbano que me leva aos locais, quando não utilizo a bicicleta (é assim mesmo que se escreve: "tram", pois ele se difere dos trens que se deslocam entre as cidades).

Há também em meu poder bilhetes usados no metrô parisiense, alguns rabiscos aleatórios que fiz provocada por uma cena que me atraiu, dicas de endereço que vão me dando, à medida que vou tendo necessidade de ir a algum lugar, isto é, um mercado, uma estação de rádio, uma loja ou uma associação; número do telefone de gente que conheci, dentre tantos outros recortes desta vida francesa, que vou tomando como minha.

Permaneço disposta a captar Strasbourg, querendo abraçá-la por completo. Todo amanhecer sou tomada por um turbilhão de curiosidade que prazeirozamente me atravessa e me pede um jeito meu frente aquilo que vier a chamar minha atenção. Outro dia, foi um dos restaurantes universitários, onde costumo comer, pagando, tanto para almoçar quanto para jantar, 3 euros [este valor eu pago, hoje, pois já sou aluna devidamente matriculada na Université de Strasbourg, mas antes de ter comigo a carteira de estudante, precisava desembolsar 4,50 euros]. O valor de 3 euros é descontado em minha carteirinha de estudante, a qual eu devo abastecer para ter o que descontar, claro.

Preciso dizer que a recarga da carteira, após eu entregar a uma senhora o valor que desejo colocar como saldo, é feita por mim em uma máquina. Isso mesmo, aqui há máquinas para tudo. E haja a palavra "validar" para se ter acesso ao serviço que elas garantem. É assim: você abastece a carteirinha de estudante numa máquina para ter recurso para usar nos restaurantes e nas cafeterias universitárias e, depois, valida; compra o bilhete do tram urbano e, em seguida, valida; coloca moedas na máquina de lavar roupas numa lavanderia, e valida; alimenta a máquina que oferece café, e valida; coloca o cartão de crédito na bomba de combustível, no posto de gasolina, e valida. E, se não validar, o bicho pega. Por exemplo, se você se esquecer de validar a passagem de tram e dentro do vagão você dê de cara com algum funcionário do controle, é complicação na certa.

Algumas funções, no velho mundo, já foram mesmo retiradas da dimensão humana e eu honestamente não desaprovo de todo, pois existem maneiras de produzir que eu sempre considerei reducionistas do "ser pessoa" que habita as pessoas, a exemplo da atividade que consiste em apertar botões dentro de um elevador para conduzir seus passageiros de um andar para outro. Ôps, mas aqui estou entrando num terreno por demais complexo, que dialoga com a Sociologia do trabalho e requer muitas linhas. Vou resistir ao desejo de falar mais sobre isto, deixar o assunto "trabalho" de lado e retomar o fio da meada deste texto.

Pronto, voltando ao restaurante universitário, que foi o que citei para falar do quanto estou aberta ao que Strasbourg me revela dela, e, por conseguinte, me leva a revelar-me a mim mesma, preciso contar que, estando eu, pela primeira vez, dentro do Gallia, um dos restaurantes universitários da cidade - aqui, entre restaurantes e cafeterias universitárias, existem 14 opções -, meu pensamento trabalhou muito, muito mesmo. Ele atuou mais do que o estômago e seus movimentos peristálticos.

Fiquei atenta a tudo que as pessoas faziam em relação ao comportamento na fila, ao ritual de apanhar bandeja, prato, copo, talher... e imitei cada passo para não pagar mico. Servi-me de tudo que pude, e pode-se bastante: salada, prato do dia, queijos luxuosos e sobremesa. Acomodei-me numa das mesas, olhei para o teto e estava dado o start para eu me perder em meio à beleza arquitetônica do lugar. Fiquei ali, com meus olhos de visitante, tomada pela estrutura daquela construção antiga, suas cores, suas luzes, seus lustres. Quis abarcar tudo que eu enxergava e, quando me procurei, lá estava eu almoçando com minhas lembranças da estudante universitária que fui, em Aracaju, quando cursei Jornalismo, na Universidade Federal de Sergipe (UFS).

Fui percebendo o quanto gostei de ser estudante de graduação e como gosto de manter esta aura como parte da minha personalidade. Afinal, aprecio estar neste lugar de quem aprende sempre, gasta pouco, se diverte com o que surge e tem interesse em conhecer as pessoas que aparecem no caminho. Avancei na ingestão da comida com tempero novo e, entre uma garfada e outra, me vi dimensionando meu vínculo com quem eu já fui e preservo e, ao mesmo tempo, meu afastamento de quem eu fui e não quero e nem preciso mais ser - ai, como é bom termos este direito de deixar de sermos quem fomos! Comi lentamente o dito "prato do dia", nosso famoso prato feito [mas não sei o que era exatamente, pois ainda não sei decodificar as opções], e, quando eu estava devorando a sobremesa, fui assimilando o quanto minha identidade é atrelada à dimensão estudantil da minha trajetória, acionada com ênfase quando habitei a cidade de Aracaju, onde morei numa república povoada de alegria, criatividade, amor e desejo de ser feliz.

Ao me ver friccionada com esta constatação de que minha identidade atual carrega muito do universo estudantil vivido em terras aracajuanas, para aonde fiz meu primeiro deslocamento a partir da minha cidade de origem: Feira de Santana, me lembrei imediatamente da frase do livro "Memórias de Adriano", de Marguerite Yource, e que diz: "O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos (...)". Pronto, foi encontrar-me com esta frase e todo um chacoalhar de perguntas me cercou: quantas vezes podemos nascer? Quantas vezes devemos morrer? Quantas cidades podemos carregar como nossa? O que me é inteligente, hoje, permanece, amanhã? O que sei sobre mim, agora, dura quanto tempo? Aquele ponto que em mim não gosto pode se dissolver, quando eu me cruzar com a próxima cidade que vou conhecer?

4 comentários:

  1. O texto , como sempre, perfeito e encantador.
    O mais saboroso de tudo, para mim, é ver todas as tuas sensações e vivências sendo materializadas em palavras. É delicioso !
    Sem falar no modo delicado de domar as palavras que você transmite. Adorei.
    Espero poder me deleitar mais com estes deslumbrantes retratos das andanças de seus pés e suas lindas sapatilhas por Strasbourg.
    Beijos

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  2. Olá Sarah, de acordo com a frase de Marguerite Yource, podemos dizer que seu lugar de nascimento seria Aracaju?! D. Helder dizia ser "um cidadão do mundo". você hoje está uma cidadã francesa!? risos. Uma coisa eu tenho certeza, o dia do seu nascimento é HOJE 27/05/2011 menina! PARABÉNS pra você nesta data querida que Deus lhe abençoe, e lhe dê looonga VIDA! Beijão, Alaide

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  3. Mona,

    Suas palavras me emocionam. Você é mesmo uma menina-mulher bastante sensível. Maravilhoso isso.

    Beijos com muito amor,
    Sarah

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  4. Alaide querida,

    Eu acredito que estou mais para cidadã do mundo também, rs... Há dias em que me visto para sair e quando me dou conta, estou com uma blusa que eu adquiri na Espanha, o relógio que comprei no aeroporto, em Portugal; uma pulseira paraguaia, que um índio me vendeu, em Assuncion, e meu broche com a flor artesanal que eu trouxe de Lima, no Peru. Sinto-me de muitos lugares, mas o dia da minha vinda ao mundo, sem dúvidas, como você tão bem escreveu, é hoje, 27 de maio. VIVA! Salve esta data! Adoro aniversariar.

    Grande beijo e obrigada pelos votos de felicidade,
    Sarah

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