27 de julho de 2011

Lados, direções, caminhos, lembranças

O dia não entra por dentro do outro aleatoriamente, o dia entra por dentro do outro, de forma cerimoniosa, como se à meia-noite toda simbologia do vasto mundo viesse morar em meu sono, confirmando-me que estou mergulhada num vigoroso processo de observação daquilo que meus olhos alcançam e minhas mãos tocam. De tudo que eu estou vivendo o que em mim se impregna eu não consigo mensurar em dados muito exatos, mas sei que é da categoria enorme e do tipo que fica irreversivelmente alojado dentro da gente.

Sinto-me irmanada com a possibilidade irrefutável de me ocupar em ver Strasbourg como se ela, todos os dias, se preparasse para acolher minha apreciação. Recebo-a como uma carta que a vida me escreveu e em minha leitura vou reparando minuciosamente a ortografia impressa e a pontuação empregada; capto o acento que abre suas casas, a vírgula que pausa suas ruas, a sílaba que tonifica seu céu. Curioso que, embora eu esteja aqui há pouco mais de três meses, a cidade já aparece em meu pensamento para além do tempo presente.

Pego-me pensando, por exemplo, que no primeiro dia nestas terras floridas, tomando minha casa como referência, fui para o lado esquerdo; no segundo, para o direito, onde encontrei o café que tomei. Nos dias seguintes, andei até a esquina mais próxima e que fica à direita. A partir dali, alguns caminhos são possíveis, pois trata-se de uma encruzilhada. Novamente, escolhi o lado esquerdo, onde achei a primeira boulangerie (padaria) com a qual me deparei em terras francesas.

E este encontro pode ser tomado como um ato de iniciação, pois as boulangeries, na França, são espaços sagrados. Elas são puro charme e requinte. Um verdadeiro prazer para a visão e para o paladar. Oferecem inúmeros tipos de pão, doces, bolos, tudo saborosíssimo e tão bonito, que mais parece peças de decoração. Adentrei a primeira que vi e comprei meu primeiro croissant legitimamente francês. Que fascínio! Guardo este momento como ouro em pó.

A boulangerie, que se inseriu como a primeiríssima da minha galeria, eu à ela voltei algumas outras vezes e, como num jogo no qual a gente grava onde cada peça está para fazer bonito na próxima rodada; após algumas idas minhas lá e observações atentas, eu sabia o local onde fica o croissant. Havia decodificado a prateleira exata, a parte precisa nesta prateleira e que gesto se faz para apanhá-lo e entregar a quem está comprando.

Tenho pra mim que a forma como se organiza a prateleira de uma padaria, os trejeitos que a vendedora da loja de perfumes compõe para atender alguém, a maneira de ser do motorista do trem, que se plasma ao sorriso da moça entregando um anúncio publicitário na calçada, dentre tantos outros gestos, têm o poder de inscrever uma cidade em nossa pele.

É, por meio de manifestações como estas, que uma cidade nos penetra. Num emaranhado saborosíssimo, os modos de ser dos seus moradores misturados à fisionomia que carrega lhe convertem num lugar único. A boulangerie de nome "Maulbecker" e a senhora que me atendeu - embora não seja nessa boulangerie que eu compre a baguete de todos os dias, pois, descumprindo o cerimonial francês, o pão da loja de conveniências do posto de combustível ao lado de casa é muito mais saboroso -, se transformaram numa lembrança que me tatuou.

Sensacional ver como os lugares se compõem como recordação, enquanto eu continuo andando para os muitos lados desta doce cidade, que abriga a cama onde todas as noites eu adormeço. Quando aqui desembarquei, eu me perguntava qual seria o lado para aonde, ao me levantar pela manhã, sair de casa e compor minha rotina, eu mais andaria. Interessava-me saber, se eu iria mais vezes para o lado esquerdo ou para o direito; estava curiosa para descobrir em que parte de Strasbourg minhas atividades se desenvolveriam com mais frequência.

Hoje, passados três meses desde minha chegada, posso dizer que, embora, para ir ao banco onde eu tenho conta e para fazer comprinhas no Supermercado Simply, eu tome o lado direito, é para o lado esquerdo que mais caminho. Muitas das coisas que eu faço: curso de francês, pesquisa na biblioteca, almoço nos Restaurantes Universitários, programa de rádio, uma passadinha pelo centro da cidade para me entrelaçar com sua beleza me exigem que eu percorra os caminhos que se abrem, a partir dele. Contudo, eu já estou providenciando mais feituras que tenham o lado direito como canal de acesso.

Afinal, me interessa andar para todos os lados e em muitas direções.    

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