17 de julho de 2011

Garrafas de vinho embaixo da pia e os doces três meses franceses

Sueli é uma índia paraense que mora em Strasbourg há mais de uma década. Ela faz doutorado em Antropologia e nós nos conhecemos no Restaurante Universitário, através de Eduardo, nosso amigo paraibano. Ela estava acompanhada de uma simpática jovem, também vinda do Pará, e que mora em Paris.

Já viu: brasileiros se encontrando em terra estrangeira rola sentimento imediatamente, de modo que alguns dias após nosso primeiro contato, Sueli nos ofereceu um jantar em sua casa - que vale dizer - é uma típica construção alsaciana, ou seja, com muitas janelas, cores e um rico jardim, que ela cuida todos os dias.

O jantar foi marcado para às 19h, horário em que Sueli costuma acarinhar as flores e as árvores, exatamente para que participássemos deste delicado momento. Ela disse que seria um prazer contar com nossas mãos e eu, claro, adorei a ideia de poder contribuir. Mas, choveu e a doação dos nossos mimos para seu jardim não se cumpriu. Uma pena, pois eu já estava compondo versos antecipados para as tulipas.

Na França, é muito comum levarmos vinho quando vamos à casa de alguém. Chegamos em terras francesas e, com um pouquinho de tempo, já estamos tomando pé deste rito, que agrega charme, carinho e atenção. É muito gostoso dar e receber vinho. Logo, antes de sairmos de casa e partirmos em direção ao mundo de Sueli, necessário se fazia apanharmos um vinho para lhe presentear.

Percebi que embaixo da pia da cozinha havia três garrafas de vinho branco - na Alsace, região onde moramos, a espécie de uva cultivada é propícia para a produção desse tipo de vinho -, olhei uma a uma as garrafas e conclui que nenhuma poderia ser transmitida para outra pessoa, pois todas tinham um significado particular.

A primeira ganhamos do adorável amigo francês Victor Hope. Era sexta-feira e ele nos visitou para que Nelson fizesse uma foto sua, a qual seria agregada ao curriculum vitae, que ele enviaria para uma empresa de engenharia ambiental, na Espanha. Victor, que conosco "troca idiomas", pois está aprendendo português e nós estamos à cata do seu francês, estava muito bem vestido com um terno très chique; ele queria sair bem na imagem de si.

Esta situação nos rendeu uma conversa boa sobre as incongruências do universo profissional que, de forma um tanto quanto complexa e pouco coerente, reúne currículo, mercado, escolha profissional, salário, vontade de crescer, de ir além, de ser feliz e realizar sonhos. O desejo de Victor era fazer uma foto que despertasse em quem venha a olhar seu currículo certa curiosidade para lhe conhecer. Logo, ele queria transmitir o que comunica, em termos de atitude para a vida.

A segunda garrafa compramos na vila de Riquewihr, pertinho de Colmar, cidade vizinha à Strasbourg. Trata-se de um vilarejo alucinadamente belo, com ruelas graciosas, casas enfeitadas e uma aura de romantismo, que supera a de Paris. No dia em que lá estivemos, era sua festa da música e curtimos um delicioso rock and roll em meio a construções medievais - um dos seus portais data de muito antes de 1500. Foi maravilhoso!

E, por fim, a terceira: um Gewürztraminer - é a primeira vez que eu escrevo esta complicada palavra e fico me perguntando como é possível redigi-la sem recorrer a uma pesca, como sabe fazer Christina, senhora que vende queijos na feira. Certo dia, paramos em seu carro-barraca e lhe pedimos um queijo muito especial. Ela prontamente respondeu: "todos aqui são especiais".

Insistimos: "queremos um que seja bastante diferente para nosso paladar latinoamericano". Christina, com uma agilidade que chamou nossa atenção, apanhou, embrulhou e nos vendeu um queijo, produzido com uma espécie de cogumelo que brota exclusivamente no outono. Ela nos recomendou que o comêssemos acompanhado do tal vinho de nome difícil, e que é mesmo dos deuses. Quanto ao queijo, hum... não posso falar a mesma coisa, pois seu sabor não me agradou muito.

Seguindo a dica de Christina, dias depois, eis que compramos o Gewürztraminer na propriedade rural que visitamos e que nos rendeu um gostinho bom de intimidade com a França, pois caminhamos docemente por dentro da plantação de uva, vendo os cachos ainda bem novinhos e verdes. Estivemos, portanto, na zona rural francesa e foi muito gratificante nos ver para além do universo urbano da Europa.

Quando me dei conta de que as três garrafas de vinho, que tínhamos em casa, guardava cada uma sua própria história, pensei: em Strasbourg, nada nos é gratuito, nada é simplesmente rotina, estamos mesmo tendo uma relação mágica com toda esta experiência que aqui se desenrola. Afinal, por detrás de cada compra, de cada novo item que nos chega, por detrás da ida à feira, ao mercado, ao cinema, à universidade, ao banco, existe um sentido bonito participando, adicionando uma camada de emoção que carimba todos os momentos como inesquecíveis.

Impedidos, então, pelo sentido singular depositado em cada uma das garrafas, de transferi-las para a amável Sueli, seguimos para sua casa, sem vinho. Desta vez, não conseguimos cumprir o rito. Mas, como se tratava de uma brasileira, estava tudo em casa, como gostamos de dizer, e até pegamos carona no vinho levado por Edu, que também participou do jantar.

Foi uma noite maravilhosa e contou ainda com a presença de um agradável casal de espanhóis. Sueli nos serviu saladas, massa, frango, torta de damascos (colhidos no seu jardim),vinho, cerveja, café e chá. Todo este banquete, que fora contornado por luz de vela, teve como entrada um magnífico peixe amazonense com uma farofa especialíssima, prato que nos era tão novidade como foi para o casal da Espanha.

O Brasil é tão grande, que algumas partes dele estamos acessando nas bandas de cá e isto é simplesmente fabuloso, rende, com certeza, outro texto, mas este ficará para outro dia. Por hoje, quero apenas dizer que, hoje, eu completo três meses de fixação em terreno frutífero e senti vontade de contar esta história sobre as três garrafas embaixo da pia.

Afinal, é uma história que entrelaça um amigo francês, uma vila, uma feirante, um produtor rural; vinho branco, amigos brasileiros, um casal espanhol e uma casa com jardim, e eu acredito ser esta uma mistura muito boa para confirmar o quão é enriquecedor viver em Strasbourg. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário