20 de abril de 2011

Texto, voz, interrupção, questionamento

A perspectiva da chegada é uma delícia. Tudo se soma num quantitativo bonito, cuja degustação é de um sabor que beira o êxtase. O ponto que demarca o começo de uma jornada sempre estará guardado no espaço mais especial que temos em nosso íntimo. Falo daquele lugarzinho dentro de cada um de nós reservado para o arquivamento dos momentos que, sabemos, são disparadores de uma camada interminável de emoções, as quais serão transformadas, mais tarde, em verdadeiras pérolas adornando nosso coração, este pedaço humano tão ferverosamente desejoso de prazeres.

Ao colocar os pés na França, além de eu ter escutado em meu fone de ouvido, ainda dentro da aeronave da Airfrance, a música "Samba da Rosa", de Vinicius de Moraes, que sabiamente compôs: "rosa pra se ver, pra se admirar, rosa pra crescer, rosa pra brotar (...) rosa pra sorrir (...) É primavera / É a rosa em botão", lembrando sempre que desembarquei em solo francês, quando a primavera apontava no horizonte e pedi a este país que me recebesse como flor em seus jardins, as vitrines das lojas se ocuparam de tudo que se refere ao mundo dos chocolates e dos coelhos, pois a Páscoa se aproxima e esta data deixa Strasbourg com ares de infância.

Vira e mexe, encontro um parquinho com brinquedos eletrônicos pelas ruas, com crianças se divertindo e as mães cuidando delas. Sim, aqui a figura da babá inexiste. Posteriormente, vou procurar saber melhor como as mulheres dão conta de cuidarem dos seus pequenos, levando-os de carrinho para todos os cantos e dispensando a contribuição de outra mulher. Aproveito para deixar registrado o quanto a situação da babá me incomoda. Muitas delas deixam seus filhos entregues ao descuidado, em casa, para cuidarem dos filhos de outras mulheres e garantirem uma renda mínima para criarem suas crianças.

Interessante que este texto teve sua produção interrompida porque recebi a visita da professora Laurence e da sua filha Julina, de 11 anos. Mãe e filha me buscando, quando eu estava escrevendo exatamente sobre a relação das mulheres com suas crias. Eita vida boa de sintonia esta minha, meu Deus! A professora veio aqui em minha mais nova casa, situada na Boulevard de la Victoire, 6700, Strasbourg, para me conhecer e dar as boas vindas. A jovem da recepção me avisou pelo telefone que havia pessoas me esperando. Apanhei meu caderninho, minha caneta e entrei no elevador. Passados alguns poucos segundos, estava eu cumprimentando Laurence e Julina. Vale dizer que fui ao encontro da professora, com a certeza de que teríamos uma conversa rápida e destinada quase que exclusivamente a compromissos de pesquisa. Isso porque nos dizem: os franceses são muito práticos etc, etc. Mas, adianto: não tive com ela um papo acadêmico.

Laurence me convidou para um café. Eu então voltei ao estúdio 811, no oitavo andar, apanhei minha bolsa e rapidamente desci. Munida de passaporte e alguns euros, fui com ela e sua filha a um café próximo. Sentamos à mesa e a primeira pergunta que ela me fez foi se tenho filhos. Respondi que ainda não, mas que os quero, loguinho, loguinho. E ali, com esta frase, estava iniciado um diálogo povoado de falas líricas. O encontro teve muito sabor, eu falei bastante das minhas viagens, sobretudo, a que fiz na companhia de outros estudantes por nove países da América do Sul (cada vez mais me asseguro da riqueza desta experiência). A parte desta linda imersão em terras sulamericanas que mais destaquei foi a conversa de uma tarde inteira com as Madres de Plaza de Mayo. Laurence adorou saber deste contato e quer mais notícias sobre elas.

Contei também que há pouco mais de dois anos estive em Portugal, e este pronunciamento desencadeou entre nós três (Laurence, sua filha e eu) uma conversa sobre a língua portuguesa, em português. É que Laurence é casada com um paraense, viveu longo tempo no Brasil e tem filhas brasileiras. Logo, nossa interação aconteceu ancorada em minha língua-mãe. Engraçado que em nenhum momento acionei o caderninho para agendamentos formais; nada de exigências, acordos, regras. Externei o quanto me encantei ao ver as mulheres cuidando dos seus filhos, em Strasbourg. Ela confirmou este traço da mulher francesa, mas não chegou a apontar as razões socioeconômicas e políticas para que esta realidade seja vivida por aqui. Mas, claro, que eu, com meu senso poético-jornalístico-sociológico, vou mais adiante nesta investigação.

A soltura tomou conta da nossa mesa e eu ainda ganharia um presente: o empréstimo de uma bicicleta. Sim, Laurence me cedeu uma antiga sua, que estava guardada no estacionamento da Université de Strasbourg. Como a universidade fica bem pertinho de onde estou alojada, fomos lá e rapidinho estava eu detendo uma magrela. Bicicleta aqui é o veículo predileto e a que neste momento está sob meu poder já me rendeu deliciosas voltinhas pelas ruas floridas. Obá, esta experiência eu classifico como sensacional! Ah, minha bicicleta temporária também já agrupou em torno de mim pelo menos uma narrativa divertida e outra que confirma exatamente aquilo que contribui para a construção da pergunta que quero deixar expressa, ao final deste escrito. Mas, as histórias produzidas a partir do meu novo veículo, assim como meu primeiro almoço no restaurante universitário, ficarão para outro instante.

Bom, gente, haja curiosidade. Soma-se tudo, como eu falei, num quantitativo admirável, e vai se acoplando a meu corpo. E olha o corte rolando! É que houve mudança de percurso na produção textual que aqui se apresenta. Ôps, mas vocês estão de acordo que o encontro com Laurence e Julina, que atravessou justificadamente esta composição, foi digno de uma narrativa feita no calor da hora. Afinal, é tão saboroso o cheirinho da escrita-pós-acontecimento vivido. Adoro! Prometo, depois, noutro momento, escrever sobre aquilo que aqui estaria. Ah, aproveito para dizer que a partilha das minhas experiências neste espaço vai acontecer obedecendo ao ritmo frenético do ziguezague. Vou usar e abusar do movimento espiralado da memória.

Sim, mas voltando ao questionamento que eu desejo deixar aqui impresso, vamos lá. A interrogação foi estimulada pelos delicados encontros que tive desde que desembarquei em terras novas, de peito aberto e com uma sede gigantesca de conhecer o que virá. Os encontros aos quais me refiro são, tanto os mais demorados, como o que aconteceu com Laurence e Julina, quanto os mais efêmeros, como o que tive com uma senhora gorduuuuucha e que, me vendo examinar no chão da sua rua dois bichinhos que me pareceram joaninhas, se juntou a mim e ali ficamos ela e eu rindo, contemplando a natureza e nos fazendo uma deliciosa companhia.

Cenas, como esta, fizeram brotar em minha cabeça o seguinte questionamento: "A gentileza é artigo brasileiro, conforme acreditamos ser, ou é artigo universal que dispõe de diferentes idiomas"?

14 comentários:

  1. Mon amour... a gentileza deve ser estimulada em todos os recantos do planeta, afinal é universal. Bom descubrir que não temos o monopólio comportamental do olhar para o outro. Bom saber que o amor está em todos os lugares e pertence aos cidadães da terra de todas as raças de todos os credos e de todos os gêneros.

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  2. Mon amour,

    Inspirado comentário o seu! E acredito que pode ser epígrafe para criações artísticas nossas. Adorei! E sigamos experimentando o amor nas mais diferentes línguas.

    Muitos beijos,
    Sarinha

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  3. Suas palavras também nos faz degustar um pouco do sabor da França e desta incrível experiência que começastes a ter. O texto com suas interrupções, vozes e questionamentos está sedutor. mas a parte em que mais gostei foi das voltas pelas ruas floridas na magrela.
    beijos

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  4. Ai como gostei de saber que: mães cuidando de filhos, visitas cordiais (quando seria acadêmica), convesa em português, bicicletas, ruas floridas e... gentileza, é universal. Daí vem uma pergunta que sempre me faço: a vida é igual em todo lugar?
    Amei o texto
    Bj

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  5. A de ser UNIVERSAL esse GENTIL JEITO de fazer o bem...

    Que GENTILEZA a sua nos brindar com tão delicioso encantamento... É bem bom viajar...

    Eu chegando... vc partindo... e sigamos com FÉ NA ESTRADA...

    Bj
    TAO

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  6. A gentileza é matéria dos carregam tulipas dentro da alma.
    E acredito que as tulipas nascem em muitos lugares!
    Que delícia de texto...vê-la feliz me é tão feliz!
    Bjos amiga feixe de luz.
    Bruno

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  7. Mona,

    Fico feliz em ter classificado meu texto como sedutor. Quanto às voltinhas nas ruas floridas, posso garantir que são apetitosas.

    Beijocas,
    Sarah

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  8. Lúcia amada,

    Você literalmente captou a alma do texto, me trouxe suas mais preciosas palavras. Que lindo! Este é o texto que lhe falei que precisei reescrever, pois havia sido perdido no momento da publicação. Bom, não sei se a vida é igual em todo lugar, rs... Para mim, ela é igual e é também diferente. Mas, o legal de sair do nosso universo é exatamente fazer estas medições e, acima de tudo, nos perceber dentro de um planeta, que gira, gira, gira... e segue seu passo.

    Beijocas,
    Sarah

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  9. Tiago querido,

    Que maravilha lhe ter por aqui! Volte sempre, meu anjo. Quero mesmo fazer deste espaço um lugar para a construção das minhas narrativas. Muito legal a sua forma de comentar. Curti deveras.

    Beijocas,
    Sarah

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  10. Amigo Bruno,

    Que delicado... Viva as tulipas, meu amigo! Que nossa felicidade só cresça. Não me canso de repetir: adoro nossa troca.

    Beijocas,
    Sarah

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  11. Olá Sarah, que saudade! aliás Saudade, parece ser a única coisa que não é universal!
    Depois desses comentários todos que me antecederam falo apenas pra aproveitar a oportunidade de participar da conversa da pele, e matar a saudade! Bjo Alaide

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  12. Alaide querida,

    Bom ler você aqui. Ah, sim, saudade é uma palavra nossa, mas penso que o sentimento é universal.

    Beijocas

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  13. Amiga querida,
    Bateu saudade, vim buscar você, por aqui!
    Lindo texto, suas narrativas nos levam à sua vivência. Que alívio saber e sentir a leveza da sua chegada e do contato inicial com sua orientadora francesa. Que a gentileza, a leveza e amor acompanhem a sua jornada.
    Um abraço, com amor
    Aldacy( Nêga)

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  14. Amiga linda,

    Bom demais receber seu comentário! Estou muinto contente. A vida segue deliciosamente em terras francesas. Estamos agora em Paris, inundados com a explosão de apelos visuais que esta cidade abarca.

    Beijos com muito amor,
    Sarah

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