24 de junho de 2014

“Eu perdi meus dois pais”, diz octogenária que testemunhou a ocupação da França

Quando nossa reportagem contatou o estudioso Laurent Védy para agendar uma entrevista com sua tia Yvette Buisson, cuja vida foi diretamente afetada pela Resistência, ele respondeu por e-mail: “domingo, após o almoço, nós podemos ir à sua casa, mas aviso antecipadamente: ‘ela terá a lágrima fácil, mesmo muito tempo depois’”.

Laurent tinha razão. Yvette, que mora na pequena cidade de Paray Vieille-Poste, onde uma das praças, desde o ano de 1951, leva o nome de Maxime Védy, tio que a adotou como filha e foi um adepto da Resistência, lembra com dor o período em que a França foi invadida pelos alemães:

“Embora muitos anos já tenham se passado, é como se tivesse sido ontem”, falou apresentando uma voz embargada, após ter disponibilizado para nossa reportagem a pasta onde ela guarda todos os documentos alusivos a Maxime Védy, como as condecorações póstumas recebidas pela família e as correspondências enviadas por Maxime quando ele se tornou preso político no Fort Barraux, estrutura que serviu de cárcere para as duas grandes guerras.


Foto: Luciano Fogaça
Praça Maxime Védy

Entre essas correspondências está a última carta escrita por Maxime três horas antes de ser fuzilado, na qual ele solicita que Yvette seja oficialmente reconhecida como sua filha e que a empresa de sua propriedade se converta numa sociedade operária.

Essa carta – uma folha de papel sem margem escrita nos dois lados – traz frases que seus descendentes memorizaram por completo, e uma delas é esta: “Eu sou corajoso diante da morte, entretanto, eu amava muito a vida, eu já tinha percorrido dois terços da minha existência, e o terço que será de mim levado esta tarde será recompensado pela imortalidade da minha personalidade, pois eu morro como um bom francês, eu morro consciente de ter servido ao meu país”.    

Arquivo da família
Última carta de Maxime Védy antes de ser executado

Pai natural e pai adotivo
Yvette tinha 17 anos quando a Alemanha invadiu a França, e não fazia ideia do quanto a sua vida seria outra a partir dali: “eu perderia minha juventude; foi um tempo sem viagem, sem saídas, sem alegria, sem riso, até mesmo sem bicicleta, a brutalidade dos alemães estava por todos os lados; havia muita restrição”, recorda, e logo em seguida descreve o que se passou durante a Ocupação:

“Qualquer pessoa vista como progressista era tomada como inimiga quando a Alemanha nos invadiu, e na década de 40, progressista era qualquer pessoa que se posicionasse contrária à burguesia, ao estabelecido e ao catolicismo excessivo”, explica.

Yvette não conheceu o pai, ele se chamava Gilbert Médéric Védy, “e se ele foi um desconhecido para ela, não é, no entanto, para a história dos sombrios anos da França”, informa seu sobrinho Laurent, salientando que Médéric foi uma importante referência na luta contra a Ocupação, mas que sua filha não o conheceu, visto que ele construiu outra família e a abandonou quando ela ainda era um bebê, razão pela qual Maxime, seu irmão, a adotou.

Foto: Luciano Fogaça
Yvette Buisson

Os dois irmãos e os seus percursos
Maxime e Médéric não tinham contato entre si, mas cada um, do seu lado e a seu modo, desde que um movimento de recusa às ordens dadas por Pétain começou a se espalhar pela França, se engajou em atos contrários ao nazismo.

Ambos empreenderam consistentes trajetórias de luta, as quais os fizeram conhecidos no país: Maxime recebeu postumamente o título de Compagnon de la libération (Companheiro da Liberação), a mais elevada honraria disponibilizada pelo Estado francês para quem participou da Resistência, enquanto Médéric tem seu rosto estampado num selo postal.

“Desde as primeiras horas Médéric estava convencido de que era preciso fazer a Resistência, enquanto a maioria hesitava; tanto que já em 17 de junho de 1940, ele colocou um barco de sua propriedade à disposição para que 12 soldados ingleses voltassem para seu país, e em 3 de julho do mesmo ano começou a imprimir e a distribuir panfletos anti Pétain”, destaca Laurent. 

“Médéric foi engenheiro numa empresa pública, se desfez de todo seu patrimônio, queimou todos os seus documentos e se rendeu à clandestinidade, tendo chegado à função de deputado na Assembleia Consultiva relacionada à France libre, em Alger”, narra Laurent trazendo mais adiante o percurso de Maxime: “ele vendeu todas as suas terras e a maior parte de sua empresa para poder se juntar à Resistência”. 

Maxime, segundo Yvette, começou a participar em segredo: “Ninguém da família sabia que ele fazia parte da Resistência, suas saídas de casa eram, para nós, sempre em razão do trabalho; só soubemos do seu envolvimento quando minha mãe e eu fomos presas e interrogadas. Neste dia descobrimos sua ligação com o movimento”, explica fazendo questão de mencionar que elas duas não sofreram tortura e foram liberadas no mesmo dia, já que Maxime, que era procurado há muito tempo, foi capturado no mesmo dia.

“Ele tinha 150 funcionários e guardou o espírito operário”, afirma Yvette, para quem Maxime “foi um verdadeiro militante, pois se desfez de boa parte do seu patrimônio para fazer frente ao nazismo e quando foi preso trazia consigo 35 mil francos para pagar os soldados franceses”.

Arquivo da família
Médéric e Maxime Védy

O reencontro e a curta reaproximação
Médéric e Maxime, depois de muitos anos sem se verem, se encontraram por acaso, em 1943, numa reunião preparatória do Comitê da Liberação de Paris, e assim descobriram a mútua identificação com os ideais da Resistência. Mas os dois não tiveram muito tempo para se reaproximar.

“Maxime morreu em 7 de março de 1944, fuzilado no Mont-Valérien, e Médéric em 21 de março de 1944, depois de ter sido capturado pela Brigada Antiterrorista, próximo a uma das estações de trem em Paris, e para não se deixar ser torturado, decidiu durante o interrogatório ingerir sua pílula de cianureto”, conta Laurent.

Marcas
Yvette mora na mesma rua desde que nasceu, tendo mudado somente de casa e uma única vez. A antiga residência é onde vive Jean Max, um dos seus três filhos, e em cujas instalações há marcas do período da guerra, quando poupar era uma obrigação: “Havia muita escassez, tudo era racionado, desde comida ao caderno escolar; lembro que tínhamos direito a uma barra de chocolate para cada três meses; quando eu recebia a minha, eu comia toda de vez, enquanto minha amiga comia pedacinho por pedacinho, e houve um dia em que eu falei: ‘coma de uma vez só pra ver como é bom’, ela então comeu e foi uma festa para nós duas”, recorda-se.

Foto: Luciano Fogaça
Casa de Jean Max onde Yvette passou a infância e onde morou Maxime Védy

As perdas sofridas aparecem a todo instante nas falas de Yvette, que lamenta não ter podido conhecer seu pai biológico: “Eu estava me preparando para conhecê-lo, depois que meu tio me disse que eles tinham se encontrado numa reunião, em Paris, mas antes de eu ir até ele, ele cometeu suicídio para não ser torturado, o que aconteceu 15 dias depois de meu tio ter sido fuzilado; ou seja, num intervalo curto eu perdi os meus dois pais”, diz com os olhos marejados.

No entanto, em meio a tristeza, Yvette revela a força de quem sabe o que é atravessar uma guerra: “sobreviver foi muito difícil, e só foi possível sobreviver a tudo isso porque a vida é algo forte e suporta tudo, e porque nós, humanos, somos alguma coisa de muito sólido”, afirma a senhora de rosto sereno que, quando perguntada que lição a Resistência lhe deixou, responde: “nós aprendemos a ser coerentes, a ter convicção, a ter o espírito aberto ao outro e a não tolerar a injustiça social”. 

NOTA DA AUTORA: Espero que esta reportagem contribua para fazer conhecido no Brasil um pouco do que foi a Resistência Francesa.    

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